sábado, 1 de agosto de 2015

Entrevista com Cate Blanchett: "As mulheres podem fazer seu próprio conto de fadas" - Elaine Guerini, de Londres


A atriz assume a pior vilã de sua carreira, a Madrasta de "Cinderela", que estreia no dia 26, e diz que seu próximo desafio profissional é não fazer absolutamente nada

A atriz australiana Cate Blanchett caiu nas graças do público pelas rainhas, princesas e mulheres elegantes que interpretou no cinema. Sua beleza clássica e suas escolhas profissionais certeiras contribuíram para uma carreira luminosa e premiada, que nunca a desviou de sua prioridade, a família. Aos 45 anos, Cate acaba de adotar uma menina, Edith Vivian Patricia, quarta filha de uma fila de três meninos (Ignatius Martin, de 6 anos, Roman Robert, 10, e Dashiell John, 13), fruto da relação de 18 anos com o dramaturgo Andrew Upton. E, aso 45 anos, a atriz vai viver a pior vilã de sua carreira, a Madrasta de "Cinderela", filme da Disney que estreia na quinta-feira, 26. Dirigido por Kenneth Branagh, o longa-metragem se aproxima da animação de 1950, versão mais que açucarada do original dos irmãos Grimm. "Mas aqui", garante a atriz, "princesa e príncipe estão em pé de igualdade". Alçada a ícone feminista ao esbravejar com um cinegrafista que filmou seu corpo de alto a baixo durante a cerimônia de entrega do Oscar de 2014 (do qual saiu com a estatueta de Melhor Atriz), Cate Blanchett acredita que hoje as mulheres podem criar contos de fada a partir de suas vidas e que a mensagem de "Cinderela" é maior que a questão da desigualdade entre os sexos. "Prefiro o filme por ensinar as crianças que o mundo pode ser um lugar ruim e que é preciso uma boa dose de coragem e resistência para sobreviver".

Istoé - A animação de "Cinderela" de 1950 refletia o modelo de comportamento feminino da sociedade da época, machista. Cinderela era obediente e, como prêmio por sua resignação, ganhava um casamento com um homem rico e poderoso. O filme que estreia agora poderia ter avançado mais nesse sentido, não?

Cate Blanchett - Respeito a decisão do diretor (Branagh) de não ter feito uma versão atualizada do conto de fadas, preferindo manter os elementos do clássico. Acredito, no entanto, que os personagem evoluíram naturalmente. Na animação, Cinderela era um tapete pisado por todos, enquanto o Príncipe não passava de um bonitão. Aqui há uma preocupação em desenvolver melhor os personagens psicologicamente. O príncipe revela suas fragilidades, o que é um aprendizado difícil para os homens - vejo isso em casa com meus meninos! Ao mesmo que Cinderela pode manifestar seus desejos de uma maneira menos passiva, em pé de igualdade.

Istoé - Dá pra dizer que o filme tem um engajamento?

Blanchett - O filme é sim feminista porque Cinderela não se interessa pelo que o consorte possa lhe oferecer: a libertação do cativeiro, uma vida confortável e tudo aquilo que a gente imagina depois do final feliz. É uma escolha amorosa. Mas o que acho mais forte e importante em "Cinderela" é ofato de a obra ensinar as crianças que o mundo pode ser um lugar ruim e que é preciso uma boa dose de coragem e resistência para sobreviver.

Istoé - Como acha que as mulheres responderão ao filme "Cinderela" no contexto atual, em que estão revitalizando o movimento feminista?

Blanchett - Acho que vivemos uma era onde a mulher pode e deve fazer o próprio conto de fadas. Cinderela sempre foi e será uma mulher extraordinária, por ser verdadeira, honesta e gentil. Diferentemente da animação, aqui ela consegue se impor. Não de um jeito enérgico e direto. Mas de um modo mai discreto e silencioso. A mensagem ainda é a mesma: bondade atrai bom carma. Não é uma mensagem ruim.

Istoé - Apesar do currículo em blockbusters e a presença em grandes eventos de celebridades, você conseguiu se preservar do assédio e da exposição em diários e revistas de fofocas. Qual o segredo?

Blanchett - Tudo depende de como a gente se apresenta e se comporta. É muito simples. Para manter certo enigma, você não pode se exibir sem necessidade por aí. Lendas como (Marlene) Dietrich e (Joan) Crawford, mulheres que admiramos até hoje, é que sabiam seduzir com sua discrição e comedimento.

Istoé - Mas naquele tempo não era preciso passar as quatro estações do ano sob holofotes para continuar no mainstream em Hollywood.

Blanchett - Sem dúvida elas se beneficiaram do período em que viveram. Naquela época, Hollywood celebrava muito mais a inteligência e o poder das mulheres. E os diretores de fotografia do passado sabiam filmar mulheres, deixando-as muito mais interessantes e ambíguas.

Istoé - Essa aversão à cultura da celebridade pode ser feita dentro de um produto hollywoodiano como "Cinderela"?

Blanchett - A beleza no filme é uma ilusão, algo que decepciona no final. No começo a madrasta desponta como uma mulher atraente. Mas se revela impiedosa, egocêntrica e assustadora ao longo da trama. De repente, aqueles cílios postiços e o batom vermelho poderosos passam a nos dar calafrios (risos). O mais triste no culto à celebridade é a noção de que todos os atores são motivados pela aparência e pelo dinheiro, o que não é verdade. Acho que essa mensagem está lá também.

Istoé - Queria ter vivido a Era de Ouro do cinema?

Blanchett - Certamente. Por mais que as estrelas do passado tivessem a imagem manipulada pelos estúdios, elas eram respeitadas e valorizadas. Costumavam ser tratadas como deusas. Os papeis eram escritos especialmente para elas, permitindo que desenvolvessem todo o seu potencial no set.

Istoé - Isso quer dizer que não é mais possível viver todo o potencial dentro de um estúdio de cinema?

Blanchett - Quer dizer que o mundo e a indústria mudaram, instigando um consumo cada vez mais voraz de imagens e notícias de cinema. Com isso, a percepção do público também foi alterada. Ele já não se contenta mais em apreciar seus atores preferidos à distância.

Istoé - Já trabalhou com atrizes que se comportaram como "madrastas" no set?

Blanchett - Tive uma experiência ruim no início da carreira. Só não vou dizer quem foi (risos). Não se se ela se sentia ameaçada por mim, como é o caso da madrasta no filme. Talvez a pessoa estivesse simplesmente vivendo um momento difícil, descontando tudo nos outros. Quem sabe ela estivesse na menopausa (risos). Prefiro pensar que foi um aprendizado. Aquilo que não consegue me matar, me fortalece.

Istoé - E o contrário? Por ser quem é, sente que intimida os atores mais jovens ou os menos conhecidos?

Blanchett - Não. No fundo eu sou uma idiota (risos). Quando estamos trabalhando, estamos todos no mesmo barco. Meus colegas vêem logo que sou tão insegura quanto eles.A melhor maneira de conhecer as pessoas é trabalhando com elas. Adoro a história do jantar de Woody Allen e Ingmar Bergman. Eles simplesmente não conversaram. De tanto medo de desmistificar o grande mestre, Woody não perguntou nada, preferindo deixar a mesa com a mesma impressão que tinha antes de conhecer Bergman pessoalmente. A dupla se admirava demais para correr o risco de estragar o sentimento com palavras. E aparentemente foi uma noite maravilhosa para ambos.

Istoé - Mesmo com a plateia sabendo exatamente como os contos de fada terminam, eles ainda a fascinam. Por quê?

Blanchett - Apesar de sabermos onde a história nos levará, nós nos deliciamos com a jornada. É como "Hamlet" de William Shakespeare. Não nos cansamos de ver a montagem. Há um certo conforto na familiaridade, ao ouvirmos uma história de novo. Eu amo contos de fadas como "Cinderela" por eles lidarem com questões complexas enfrentadas por crianças. As histórias que o público infantil ouve hoje tendem a fazê-los se sentir como heróis superpotentes, como se pudessem superar qualquer coisa.

Istoé - O  filme vende a bondade como um superpoder. Você acha que isso convence esse público?

Blanchett - Gentileza e bondade são superpoderes, ainda que esses adjetivos possam ser equivocadamente interpretados como um sinal de fraqueza no mundo cínico em que vivemos. Cinderela tem uma grande força anterior, além de ser bondosa e justa. As pessoas esquecem como é preciso ser forte para perdoar. Adoro a cena em que Cinderela diz perdoar a madrasta, ainda que esta nunca peça desculpas por tudo o que fez. Acho a ideia muito relevante nos dias de hoje, quando o mundo está movido a ódio e vingança. Perdão é o que precisamos.

Istoé - Apesar de terrível, a madrasta que você leva às telas revela seu quinhão de humanidade?

Blanchett - No momento que aceitei interpretá-la, pedi que passássemos a descrevê-la como perversa e não necessariamente como feia. Ninguém é puramente do mal. Tudo depende do que nos acontece na vida. O que me interessou foi explorar o que fez dela uma mulher tão cruel e, por isso, feia. Mostramos que ela teve seus sonhos destruídos.

Istoé - Angelina Jolie diz ter filmado "Malévola" para seus filhos. Fez o mesmo?

Blanchett - Não necessariamente. Na minha família por enquanto só os filhos homens assistem a meus filmes. E eles ficaram muito mais orgulhosos por eu ter participado de franquias como "O Senhor dos Aneis" e "O Hobbit" (risos). Mas espero que eles vejam o filme. Ainda que "Cinderela" coloque em primeiro plano as relações femininas, entre mães, filhas, irmãs, madrastas e enteadas, há uma subtrama sobre pais e filhos. Os meninos até podem dizer que não querem ver. Quando suas irmãs começarem a vê-lo no canal a cabo, no entanto, eles devem parar diante da televisão.

Istoé - Você pertence a um clube privilegiado de atrizes vencedoras de dois Oscars (por "O Aviador", em 2005, e "Blue Jasmine", em 2014). Se desejasse mais um seria até ganância?

Blanchett - (Risos) Seria. Até porque o Oscar deve ser um bônus na vida de um ator e não a motivação por trás de tudo o que ele faz. As pessoas são obcecadas demais pelo prêmio. Estou muito satisfeita com as minhas duas estatuetas. Não planejo roubar nenhuma (risos).

Istoé - Depois da conquista do Oscar, teve aquela sensação: "E agora, como poderei superar isso"?

Blanchett - Não. Meu maior desafio profissional no momento é não fazer absolutamente nada. Esse é o meu plano para 2015. Quero fazer uma vida tranquila em Sidney, onde o meu marido comanda a nossa companhia teatral. Nem atuar nos palcos eu quero por enquanto. Talvez só em 2016. A vida, em si, é algo incrivelmente interessante, ainda que a minha não seja tanto.

Istoé - Não é mesmo?

Blanchett - Não, apesar de sempre quererem saber o sabonete que eu uso e outras tolices do gênero (risos).



(texto publicado na revista Istoé nº 2363 - ano 38 - 18 de março de 2015)






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