domingo, 11 de setembro de 2016

Coisa de raiz - Cíntia Bertolino e Paula Moura


No Brasil do jeitinho, raiz-forte até passa por wasabi. Mas, no Japão, não convite para o mesmo sushi essas duas raízes-condimentos que, embora tenham sabor parecido, são muito diferentes quando consumidas como se deve

Pode ser meio decepcionante, mas a pasta esmeralda da capa, conhecida dos frequentadores de restaurantes japoneses no Brasil como wasabi, de aroma e sabor característicos - não é wasabi. Tão indissociável de sushis e sashimis quanto o shoyu e o gengibre, esse condimento da capa é, na verdade, uma mistura de raiz-forte, corante e outros aditivos. Por serem da mesma família, as crucíferas, e compartilharem o mesmo componente responsável pela ardência, é comum a raiz-forte e o wasabi serem tidos como "gêmeos". Mas em estado natural, lado a lado, wasabi e raiz-forte não poderiam ser mais distintos.

A raiz-forte (Armoracia rusticana) é uma raiz de origem europeia. Segundo o botânico Gil Felippe , já era conhecida pelos egípcios, gregos e romanos. Alan Davidson, em The Oxford Companion to Food, conta que a raiz-forte era amplamente difundida por ser um dos poucos condimentos cativos nas cozinhas medievais antes da difusão das especiarias - cravo, canela, pimenta-do-reino - no século 16. Durante muito tempo, a raiz-forte foi fundamental para melhorar o sabor de carnes, peixes e ovos, além de ter ação antibacteriana.

Comum em toda a Europa, a raiz-forte é usada na forma de relish, em conservas como purê de maçã e preservada em vinagre. Por ser bastante perecível, não é muito consumida fresca, pois suas propriedades e sabores não se preservam por muito tempo.

O wasabi (Eutrema wasabi) natural do Oriente e cultivado no Japão e parte da China, tem um leve tom esverdeado e sabor mais sutil que a raiz-forte. O wasabi confere complexidade de sabor, enquanto a raiz-forte dá mais picância. A pasta do wasabi fresca é picante, porém muito mais suave que a raiz-forte, e ligeiramente fibrosa. E o preço é alto: mesmo no Japão, poucos restaurantes oferecem o wasabi in natura. O de melhor qualidade chega a custar 2 mil ienes cada raiz, quase R$ 40. Ou mais, dependendo da região em que foi plantado, da época do ano e do tamanho.

"Wasabi é bem fresquinho. Ele dura uns dois dias no máximo em sua forma ideal, por isso no Japão os fornecedores entregam aos bons restaurantes a cada dois dias", conta o sushiman Edson Yamashita, do paulistano Aze, que trabalhou em Tóquio quase uma década. "Aqui não chega wasabi fresco, ninguém cultiva no país", diz.

A confusão entre wasabi e raiz-forte tem várias explicações, começando pela semelhança de sabor. E, para complicar, no Japão raiz-forte também é conhecida como seiyo wasabi. No Brasil, a bagunça chega a ponto de se ler "wasabi e raiz-forte" no rótulo de um mesmo produto.

Os mercados oferecem raiz-forte em pasta, já pronta, ou em pó para ser misturada com água - essa é a versão mais utilizada nos restaurantes de São Paulo. Algumas poucas casas mais sofisticadas, como Aizomê, Kinoshita, Shin-Zushi e Jun Sakamoto, recebem, esporadicamente, a raiz de wasabi ralada e congelada, comprada de importadores.

Ainda assim, o sabor e o aroma são completamente diferentes da experiência de provar o wasaki ralado na hora. Nos restaurantes mais sofisticados do Japão, o wasabi é ralado num ralador como o da foto, feito com barbatana de tubarão que é áspera como uma lixa e consegue ralar bem fininho. Além disso, por ser de material orgânico, o ralador de barbatana evita a oxidação. O apetrecho equivale à colher de madre-pérola para servir caviar. É mais um item tradicional da cozinha japonesa, cheia de itens tradicionais. Na falta, usa-se o de cerâmica, mas jamais ralador de metal.



Considerado iguaria mesmo em casa, em razão do cultivo difícil, o wasabi ocupa o espaço entre o arroz e o peixe nos sushis e "tempera" os sashimis.

Também costumam ser acompanhados de wasabi pratos tradicionais como o zarusoba (soba frio servido em uma esteira de bambu e com os acompanhamentos à parte, cebolinha e caldo) e o ochazuke (arroz mergulhado em chá-verde e dashi em proporções iguais e com diferentes coberturas, como a de wasabi).

Em alguns restaurantes especializados em sob,a o wasabi chega à mesa in natura para saaer ralado pelo próprio cliente. Assim, o sabor da raiz pode ser apreciado em seu auge, pois o gosto começa a se perder em 15 a 30 minutos.

Além da raiz, as folhas, hastes e flores também são utilizadas na cozinha. Têm gosto picante - ainda que mais suave- e podem ser consumidas como tempurá, cozidas em shoyu ou misturadas no arroz. Também se prestam ao preparo de conservas. "A conserva de wasabi é elaborada com borra de saquê. Ela fica picante, doce e levemente alcoólica", diz Marisa Ono, do blog Delícia (http://marisaono.com/delicia).

Wasabi


Raiz-forte


Duelo radical

Wasabi (Eutrema japonica)

- A variedade mais cobiçada é cultivada em lagos de água fria nas encostas montanhosas do Japão
- A raiz intacta não tem cheiro - o sabor é suave, levemente pungente e a cor verde-clara
- No Japão, a raiz é ralada na hora da refeição em ralador de pele de tubarão
- As folhas e flores rendem uma conserva com borra de saquê

Raiz-forte (Armoracia rusticana)

- É cultivada na terra. Por aqui ainda custa caro por ter poucos produtores. Um deles, Luis Yano, em Mogi das Cruzes, já aumentou a produção
- A raiz intacta também não tem cheiro. Precisa ser cortada ou ralada.
- O ideal é usar ralador de cerâmica para não acelerar a oxidação (as raspas enegrecem rapidamente)
- Apenas a raiz se aproveita

A culpa é da sinigrina

Enzimas voláteis desmancham no ar

Além da família botânica, o wasabi e a raiz-forte compartilham características semelhantes: intensidade no gosto e delicadeza no manuseio. E ambos precisam ser consumidos de imediato ou preservados em conservas.

A razão para serem imediatistas é a mesma que lhes confere sua maior qualidade: a sinigrina. Esse componente químico responsável pelo aroma e sabor potentes é uma forma de defesa da planta. Quando a raiz é cortada ou ralada, enzimas liberam óleo volátil contendo enxofre. Inteiras, as raízes são inofensivas. Experimente cheirar uma raiz de wasabi ou raiz-forte. Ela não tem o odor ardido característico que até irrita o nariz.

Quando ralado, o wasabi libera cerca de 20 enzimas voláteis, que conferem à raiz matizes de sabores diversos, como herbal, doce, picante. A alta volatilidade dessas enzimas, que evaporam rapidamente em contato com o ar, é que torna o wasabi tão perecível.

Quando fala de wasabi e raiz-forte, o americano Harold McGee, autor de Comida & Cozinha e especialista em química dos alimentos, diferencia o picante da pimenta da pungência do wasabi e da raiz-forte.

Segundo McGee, a pungência é sentida no nariz e na boca. A sensação quase sufocante de quem comeu um bocado a mais do que devia de raiz-forte, ou wasabi, é real e estimula as terminações nervosas das narinas e da boca a ponto de enviar uma mensagem de dor ao cérebro. É uma fração dessa sensação que se busca com a pungência da raiz-forte e do wasabi.

Consumir pimenta com frequência aumenta a resistência ao picante. Com wasabi e raiz-forte acontece o mesmo. Se você é frequentador de restaurantes japoneses há tempo, deve ter notado que passou a sentir menos intensidade nesses condimentos. Mas convém não exagerar para recuperar a perda. Afinal, excesso de pungência faz diminuir a percepção dos outros sabores básicos: salgado, doce, ácido, amargo.



(texto publicado no jornal O Estado de S. Paulo de 25 de abril a 1 de março de 2013)

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