quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Meditação decifrada - Sílvia Lisboa, com reportagem de Marcel Hartmann e Priscila Daniel


Pesquisas de ponta mostram que ela mexe pra valer com o funcionamento e a anatomia do cérebro e ajuda a prevenir conturbações do corpo e da mente. E não é nenhuma complicação incorporá-la ao seu dia a dia

Com o avançar dos anos, a espessura da camada mais superficial da massa cinzenta, o córtex pré-frontal, tende a afinar. E isso não ocorre apenas nessa área, que comanda o nosso raciocínio. Essa espécie de atrofia também consome a insula e o hipocampo, estruturas que regem as emoções e a memória. Eis por que tanta gente fica mais esquecida e teimosa à medida que envelhece. Mas há uma fórmula ancestral capaz de atenuar esse processo. Fórmula testada e aprovada por exames de neuroimagem em um estudo com pessoas de meia-idade assinado pela Universidade Harvard, nos Estados Unidos. Os voluntários que a seguiam regularmente apresentavam uma capacidade cognitiva típica de jovens de 25 anos. O que eles faziam de diferente? Se sentavam em um lugar tranquilo, elevavam a mente e respiravam de forma cadenciada. Isto é, meditavam.

O experimento constatou que os praticantes de mindfulness, um dos tipos populares de meditação, conservavam mais neurônios trabalhando em recantos cerebrais como o hipocampo. "Hoje sabemos que essa região se encontra menor na presença de transtornos neurológicos e psiquiátricos", conta a neurocientista de Harvard Gaëlle Desbordes. "Quando feita com regularidade, a meditação pode inclusive retardar o comprometimento cognitivo e o Alzheimer", afirma o neurocirurgião Fernando Campos Gomes Pinto, do Hospital das Clínicas de São Paulo.

Não é por menos que nas últimas décadas grandes centros de pesquisa têm levado os monges - experts na teoria e na prática, por assim dizer - para dentro dos laboratórios. Por meio de eletrodos conectados ao crânio dos religiosos, os estudiosos apuram como a meditação influencia o funcionamento do cérebro. Em um desses estudos, o neurocientista Andrew Newberg, da Universidade Thomas Jefferson, em solo americano, desvendou que as áreas envolvidas com o raciocínio, o planejamento lógico e o senso espacial praticamente "apagam" durante as sessões, como se os monges estivessem fora de si. Enquanto isso, áreas ligadas a emoções, como compaixão e empatia, ficavam em frequência máxima. "São mudanças que reduzem a ansiedade e proporcionam bem-estar", sentencia Newberg. Claro que nada vem da noite para o dia. O tempo, bem como o tipo de meditação, define onde e como o "ohmmm" impacta a massa cinzenta.

O mais surpreendente é que as transformações positivas na ordem cerebral não desaparecem após o fim das sessões nem estão restritas aos aspirantes a Buda. Uma pesquisa do Instituto do Cérebro do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, constatou que praticantes com pelo menos três anos de experiência se saem realmente melhor em tarefas que exigem foco. "Os meditadores recrutam menos áreas cerebrais para realizar a mesma tarefa em comparação com quem não medita", conta a psicobióloga Elisa Kozasa, pesquisadora da instituição. A prova vem de exames de ressonância magnética funcional, que mostram que as áreas corticais da massa cinzenta - ligadas à atenção e ao raciocínio rápido - estão mais operantes nessa turma. Tal mudança de padrão é parecida com a que acontece na cabeça de quem aprende a tocar um instrumento musical.

Mas quanto tempo de meditação seria necessário para sentir na cuca esses efeitos? "Essa é uma questão ainda em aberto, mas trabalhos recentes sugerem que oito semanas são suficientes para modificar o cérebro", diz Gaëlle. As alterações inclusive já se refletiriam nas atitudes do dia a dia. Em outra experiência inédita, a pesquisadora de Harvard monitorou a rotina de voluntários que fizeram dois meses de meditação sem que eles soubessem que estavam sendo observados. Dentro do ônibus, aqueles que haviam participado do programa se mostraram mais predispostos a ceder lugar a pessoas de muletas. É uma evidência de que a prática injeta compaixão e altruísmo, algo que estimula o próprio ânimo para viver e se cuidar.

Por falar nisso, a nova fronteira dos estudos em meditação já dá pistas de que seu impacto no organismo é até mais profundo. A técnica pode mexer com a expressão dos nossos genes. Um consórcio de cientistas americanos, franceses e espanhóis esmiuçou em laboratório os efeitos de um dia intenso de mindfulness versus uma técnica de relaxamento simples. Depois de oito horas, os que meditaram pra valer apresentaram uma redução na expressão de genes pró-inflamatórios, trechos do DNA que exacerbam nossa resposta ao estresse e que ordenam a produção de moléculas envolvidas com diversas doenças crônicas. Na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, uma equipe notou que os meditadores experientes possuem maiores índices de telomerase, uma enzima associada à capacidade de as nossas células reagirem ao processo de envelhecimento e considerada uma das chaves bioquímicas da longevidade. Pois é, meditar parece acrescentar as velinhas no bolo.

Da mente para o corpo


A meditação entrou para o campo científico ainda nos anos 1970 graças a dois pesos pesados da academia, Jon Kabat-Zinn, da Universidade de Massachusetts, e Herbert Benson, de Harvard. Ambos estavam intrigados com o papel do estresse no surgimento de enfermidades. Até que Benson topou estudar se a prática ancestral (reconhecidamente antiestresse) exercia algum impacto sobre a pressão arterial. Confirmado o efeito, foi dado o pontapé inicial. De lá para cá, a medicina ocidental referendou os exercícios contemplativos como coadjuvantes no controle da pressão alta, da dor crônica e de desordens mentais. No caso da hipertensão, o ato de sentar-se em posição confortável, fechar os olhos e concentrar-se na respiração baixou significativamente a pressão sistólica em idosos hipertensos, segundo um trabalho da psicóloga Marcia Marchiori, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). E, para coroar, uma revisão recém-apresentada no congresso da Associação Americana do Coração concluiu que já há dados sólidos a favor da meditação (especialmente a transcendental) no que diz respeito à proteção contra infartos.

Quando se fala que a meditação propicia mais equilíbrio, isso tem fundamento e repercussão no aspecto molecular. Uma pesquisa feita pelo Einstein, a Unifesp e o Instituto Appana Mind revelou que 75 minutos de ioga e meditação da compaixão três vezes por semana ao longo de dois meses derrubaram pela metade os níveis de cortisol, o hormônio do estresse, em cuidadores de pessoas com Alzheimer, indivíduos que vivem sob alta tensão. Essa queda se traduz em melhoras na ansiedade, no padrão do sono, no ritmo cardíaco e até na imunidade.

"A prática exerce uma ação reguladora. Hormônios em excesso tendem a voltar ao normal e os que estão em falta tendem a subir", resume o ginecologista Roberto Cardoso, autor de Medicina e Meditação (MG Editores). De acordo com o psicobiólogo Ricardo Monezi, da Unifesp, o cortisol, a adrenalina e a noradrenalina, o trio que comanda a resposta a situações estressantes, não apresenta picos expressivos em adeptos de mindfulness e afins. Eis porque as sessões contrapõem a ameaça cardiovascular e minimizam encrencas psicossomáticas, como problemas de pele e intestino.

Veja bem: não pense que você vai colher tanta vantagem sentando em posição de flor-de-lótus uma vez por mês ou ignorando o treino de respiração que é base de quase toda meditação. Frequência e dedicação fazem a diferença. Para os iniciantes, o conselho é buscar um instrutor e traçar uma evolução gradual. "A meditação é um constante aprendizado", define Marcia Plessmann, professora da associação Palas Athena, na capital paulista. "Mas o princípio é simples: consiste em sentar-se em silêncio, focar na respiração e deixar os pensamentos repousarem no espaço aberto da consciência", ensina. É um convite à autorreflexão que, aos olhos da ciência, previne e alivia as mazelas do corpo e da alma.

O conceito e as versões

Meditação é uma técnica de concentração mental de origem milenar que visa aumentar o autoconhecimento. Está presente em diversas religiões, sobretudo no budismo. Mais recentemente, tornou-se também uma prática secular

Mindfulness

Está baseada em um estado de consciência no presente. O indivíduo assume uma postura de passividade e aceitação do que vem à mente. Em vez de suprimir pensamentos, ele os deixa ir e vir, mas sem que isso gere estresse.

Concentrativa

O praticante se foca na respiração, numa palavra ("paz", "calma"...), num mantra ou num objeto fixo. Sempre que houver distração, deve ignorá-la e retornar ao ponto escolhido.

Da compaixão

A ideia é mentalizar alguém e direcionar a ele sentimentos positivos, exercendo o altruísmo. Pode-se repetir frases como "Que você fique bem" (desde que seja sincero, claro).

Trascendental

Vem da tradição hindu e consiste em ficar sentado, de olhos fechado, repetindo um mantra personalizado, por meio do qual se atinge um estado alterado de consciência.

Em busca do cérebro de monge

Como a meditação altera a massa cinzenta e a defende de doenças, segundo os estudos de neuroimagem

Lobo parietal

Ao meditar, há uma redução de atividade nessa área, que governa as percepções sensoriais. É por isso que algumas pessoas sentem que estão fora do corpo nesse período.

Lobo frontal

Associada à capacidade de se concentrar, essa região tende a minguar com a idade. Mas, ao exercitá-la, a meditação atenua esse processo. Resultado: mais foco e por mais tempo.

Sistema límbico

Meditar também está por trás de uma complexa regulagem nessa área, que controla as emoções. O indivíduo se torna mais sensível às necessidades dos outros e calmo frente a adversidades.

Hipocampo

Sessões frequentes aumentam o volume dessa estrutura, o que beneficia a memória e o raciocínio. A atrofia do hipocampo está associada a males como depressão e Alzheimer.

Efeitos comprovados pelo corpo

O que já se descobriu sobre as propriedades terapêuticas da meditação

Pressão alta

Ao trabalhar a respiração e o bem-estar mental, a meditação evita picos de adrenalina e cortisol, ajudando a baixar a pressão em pessoas já hipertensas. Mas ainda não se confirmou o mesmo efeito em pessoas sem a doença.

Dor crônica

Meditar tira a tensão da musculatura e auxilia a minimizar o foco na sensação dolorosa. Praticantes de mindfulness passam a suportar mais o incômodo e a enxergá-lo com certo distanciamento.

Imunidade

O controle do estresse psicológico e fisiológico resulta em células de defesa mais espertas. E uma pesquisa americana constatou que a prática melhora inclusive a resposta à vacina da gripe.

O guia ilustrado da meditação

O que é preciso saber para que ela caiba em sua rotina e você desfrute das suas vantagens

O cardápio


Antes de meditar, evite comes e bebes que incitam o sistema nervoso, como café, chocolate e álcool, ou que pesem na digestão, como carne vermelha.

O ambiente

Procure um lugar tranquilo, distante dos ruídos do trânsito ou de aglomerações. Não tem jeito: o barulho sempre desconcerta.

A roupa

Preze o conforto. Então use vestimentas mais soltinhas, que não incomodem. Camiseta e calça de moletom, por exemplo.

O assento

Para quem está começando, a recomendação é sentar sobre uma almofada no chão ou em uma cadeira mesmo.

A postura

Deixe a coluna ereta, alinhada com o pescoço e o quadril, e mantenha as pernas dobradas e as mãos sobre os joelhos - ou fique com as mãos abertas e o dedão e o indicador ligados.

Como deve ser o treino

Orientações para quem nunca se aventurou a meditar

1) Aos iniciantes, os experts indicam a meditação concentrativa - e o apoio de um instrutor. Ao sentar-se, evite se mexer. De olhos abertos ou fechados, foque na entrada e na saída de ar dos pulmões.

2) Concentre-se em uma palavra ("paz", "amor", "calma"), em um objeto (se estiver de olhos abertos) ou em um mantra ("ohmmm"). Repita isso a cada respiração.

3) Se algum pensamento vier, deixe-o passar até que vá embora. Tente meditar ao menos 15 minutos por dia e aumente o tempo à medida que você se sentir à vontade.

4) As sessões podem ser individuais ou em grupo (com outras pessoas, há a vantagem de compartilhar a evolução do aprendizado). Escolha a forma em que se sentir melhor.

5) Com a experiência, o indivíduo pode passar para a meditação minduflness, que parte de um foco (como a respiração) e depois deixa a mente aberta aos pensamentos do momento.

A evolução

Como o corpo reage à prática regular - logo em seguida e após anos a fio

15 minutos depois

Traz uma sensação de paz e bem-estar. O indivíduo costuma sair mais confiante para os desafios do dia.

8 - 12 semanas

É o ponto de virada: se adquire mais foco para meditar, se autoconhecer e, assim, enfrentar os perrengues do cotidiano.

6 meses - 2 anos

O cérebro fica mais eficiente e a pessoa consegue ganhar atenção, concentração e resiliência diante das adversidades.

2 anos ou mais

Mais de 10 mil horas de meditação alteram a anatomia cerebral e, entre outras benesses, elevaria a expectativa de vida.





(texto publicado na revista Saúde é Vital nº 384 - dezembro de 2014)

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