sábado, 3 de setembro de 2016

Mil Maravilhas - Chico Felitti


Elke Maravilha era uma artista muito engraçada. Não tinha metiê. Havia quem pensasse nela como cantora. Para outros, era modelo. A maioria a conhecia como uma das primeiras celebridades televisivas do país.

Elke morreu na madrugada de terça (16) aos 71. Estava internada havia quase dois meses na Casa de Saúde Pinheiro Machado, no Rio. Ela havia passado por cirurgia para tratar uma úlcera, mas entrou em coma durante a recuperação. A artista, que deixa irmãos e sobrinhos, será velada a partir das 9h desta quarta (17), no cemitério de São João Batista, no Rio.

Elke não tinha um estilo. Podia ser punk, cuspindo em agentes da ditadura militar. Podia ser  a jurada louca-mas comportada do horário nobre. Podia ser a garota-propaganda que afirmava cobrar "quase nada" das marcas.

Nascida em 22 de fevereiro de 1945 em São Petesburgo (então Leningrado), na Rússia, como Elke Georgievna Grunnupp, ela veio com os pais para o Brasil aos 6 anos.

Orgulhava-se de ser apátrida. Afirmava ter tido sua nacionalidade natal, russa, cassada e perdeu a naturalização brasileira na década de 1970 quando passou seis dias presa no Dops (Departamento de Ordem Política e Social), sob acusação de desacato. Usou um passaporte da ONU até descolar uma cidadania alemã, nas duas últimas décadas.

Tradutora e professora de línguas até os 24 - falava português, russo, alemão, francês, inglês, italiano, espanhol, grego e latim -, Elke foi convencida por amigos a tentar uma carreira como modelo e atriz. Começou como jurada no programa do Chacrinha, onde fez sucesso pelo jeito espontâneo. Depois, virou amiga e a modelo favorita da estilista Zuzu Angel, assassinada pelo regime militar em 1971 quando investigava o paradeiro de seu filho Stuart, militante de esquerda.

Também fez pontas em filmes, muitas delas interpretando ela mesma.

Livro aberto

Era justamente pelas lacunas que sua vida valia um livro. Dez anos atrás procurei Elke para escrever sua biografia. Ela detestou o título provisório, "Mulher Maravilha" ("Criança, que coisa mais prepotente, Maravilha era a Simone de Beauvoir!"), mas aceitou me encontrar para repassar os principais acontecimentos.

As entrevistas eram sempre antes das 10h em padarias da avenida Paulista, onde ela mantinha um apartamento num treme-treme entulhado de adereços. Mas a biografia nunca saiu. Pedia que o gravador não fosse ligado até que terminássemos o café da manhã. Um café bem líquido: eu ia de cerveja e ela de vodca com gelo, rabo de galo ou um aperitivo italiano amargo.

Era batata que, antes do fundo do primeiro copo aparecer, passaria alguém na rua e gritaria "Oi, criança!".

Sua peruca balançava com os trancos de riso quando contava de vez em que chamou a já centenárioa Dercy Gonçalves (1907-2008) de criança. Ouviu de volta: "Quem vai querer um bebê feio pra caralho que nem eu, Elke?"

Da última vez que nos falamos, por telefone, Elke disse estar meio para baixo, reclusa em seu apartamento em outro treme-treme, no Leme. "São tempos esquisitos. Tem dia que prefiro ficar em casa com o Schopenhauer [Arthur, filósofo alemão] a sair na rua." Mas, ainda assim, ela encarava o mundo.

Em 2016, saiu de casa para um comercial da Avon, mostrando as variações de gênero como preparar sua pele para o dia a dia. Se teve algo que Elke soube fazer foi preparar-se para a vida. "Eu faço tudo errado: bebo, fumo. Ginástica, já tentei. Mas tenho preguiça. Ainda bem que o corpo ainda dá pro gasto, né, criança?", me disse em 2012, aos 67.




(texto publicado no jornal Folha de S. Paulo de 17 de agosto de 2016)

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