segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Pequenas corrupções - Walcyr Carrasco


Todo mundo se escandaliza com o petrolão. Eu também, óbvio. Atinge cifras que escapam a minha imaginação. Mas que tal pensar sobre qual é o meu, o seu, o nosso grau individual de corrupção, como cidadãos comuns?

No caixa eletrônico, por exemplo, tem uma fila grande. Alguém se aproxima. Conversa com um amigo lá na frente e, como se fosse a coisa mais natural, fura a fila. Uma vez reclamei para uma mulher:

- Desculpe, mas seu lugar é lá no fim da fila.

Ficou ofendida, respondeu agressiva. Sinceramente, se ela tivesse dito algo como:

- Eu sei, mas estou com um problema particular e tenho pressa.

Eu entenderia. Já me aconteceu, na fila do aeroporto, para verificação de bagagem. Ia perder o voo. Expliquei e me deixaram passar na frente. mas e na fila do avião? Por que a pressa, se o lugar é marcado? O motivo das prioridades é facilitar a entrada de grávidas, crianças, deficientes e idosos. Também há acesso VIP para quem tem milhagens expressivas. Já vi cada atropelo! Uma vez, enquanto tentava proteger da correria uma senhora com um filho pequeno, aconselhei:

- Vá lá para a frente, tem direito de entrar primeiro.

Ela fez que não. Corria o risco de ser atropelada.

Se dá para furar uma fila, você fura?

No restaurante, sempre alguém dá uma carteirada com o maître e passa na frente. Paro em frente ao restaurante e pergunto se tem espera. Se tem, agradeço e vou a outro. Restaurantes mais vazios, com donos saltando como caranguejos sobre possíveis clientes, também não faltam.

E a nota fiscal? Houve uma época em que até o dentista perguntava se era sem nota. Com, era mais caro. E depois ele esquecia de dar. Fazia cara de ofendido se eu insistia. Graças aos cruzamentos da Receita Federal isso está acabando. Eu declaro se paguei e pronto. Acho justo. Em São Paulo, foi instituída a nota fiscal paulista, como estímulos financeiros a quem pede. Na hora de pagar sempre perguntam:

- Quer nota fiscal paulista?

Acho um absurdo a pergunta. É regra dar a nota. Se eu pago meus impostos, por que o comerciante não? Ah, tem muito imposto. Tem mesmo. Mas, então, o certo é protestar, votar melhor. Não sobreviver à custa de pequenas corrupções. Não é só no Brasil. Tenho um amigo modelo que mora na Cidade do Cabo, na África do Sul. Conheceu uma finlandesa que passou maus bocados. Simples: finlandeses são honestos. Então, ela, logo no primeiro dia de férias, fez o que fazia na Finlândia. Deixou a bolsa embaixo de uma árvore e foi correr num parque. Na volta, cadê? Perdeu grana, passaporte, tudo. Aqui alguém tem coragem de deixar qualquer coisa embaixo de uma árvore? Já contei a história de um amigo que sofreu um acidente de carro, dois rapazes pararam para ajudar e o assaltaram enquanto sangrava?

Outro dia li sobre uma moradora de rua que encontrou dinheiro e devolveu. Virou notícia, como ocorre cada vez que um ato de honestidade, ainda mais praticado por um necessitado, acontece. Há algo muito errado num país onde honestidade é notícia.

Quando devolvo o troco que veio a mais, a mocinha do caixa me olha como se estivesse diante de São Sebastião. Claro, isso iria para a conta dela. Não sou eu que vou roubar de uma trabalhadora que está no caixa. Mas é tão pouco comum gente que devolve! Assim como caixas também frequentemente não têm moedinhas e arredondam o troco. Já estive em restaurantes que "arredondaram" em vários reais, sem nem dar explicação. Agora, pagando com cartão, a prática está acabando. O que eu falo vale para gente rica, classe média ou pobre. Um amigo meu, dermatologista, tinha duas clientes que viviam à base de champanhe. Se encheram de Botox. (E o produto custa para o médico.) Deram um cheque sem fundos e foram meses para receber. Botar Botox não é o mesmo que passar fome, onde a gente até entende o roubo de comida por desespero. Mas acontece. Como ocorre também entre os médicos. Se você for a qualquer médico e ele disser:

- Eu prefiro que o remédio seja manipulado, tenho mais confiança.

E depois indicar a farmácia, já sabe. São 30% que vão para o bolso dele. Exatamente. As farmácias de manipulação têm o costume de pagar essa percentagem aos médicos que dão a receita.

Os exemplos não acabariam nunca. A verdade é esta: nós todos vivemos cercados de pequenas corrupções. A corrupção maior é apenas a expressão de um tipo de vida que achamos até normal.



(texto publicado na revista Época nº 277 - 30 de março de 2015)

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