quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Quando a pílula é a pior escolha - Cristiane Segatto



Elas descobriram - tarde demais - que jamais deveriam ter tomado anticoncepcional. Como a vasta maioria das brasileiras, nada sabiam sobre os gravíssimos riscos dos hormônios

Na tarde de uma quinta-feira de fevereiro, a funcionária pública Daniele Medeiros Alvarenga cortava rabiolas para enfeitar o telhado da casa, em São João de Meriti, no Rio de Janeiro. Era seu aniversário de 33 anos. Daniele estava feliz. Pela primeira vez em três décadas, queria festejar duas vezes. No sábado, a reunião familiar seria na varanda. Assim que terminasse de preparar os enfeites coloridos naquela quinta-feira, Daniel transportaria uma caixa de cupcakes até o cenário da primeira comemoração: o Hospital Oeste D'Or, no Rio. Ela saíra de lá seis meses antes. "Como dizem os médicos, estou aqui por um milagre." Por muito pouco, ela não se tornou mais uma vítima fatal do desrespeito às recomendações da Organização Mundial da Saúde, a OMS, para o uso seguro de pílula anticoncepcional.

A pedagoga, que antes da licença-médica trabalhava como assessora na Câmara de Vereadores de Mangaratiba, jamais poderia ter tomado um contraceptivo hormonal. Sabia que era portadora de uma condição genética (conhecida como trombofilia) que aumenta em até 30 vezes o risco de formação de coágulos na corrente sanguínea de mulheres que usam hormônios. Os danos provocados por esse tipo de coágulo costumam variar entre graves e irreversíveis: trombose nas veias, embolia pulmonar, trombose nas artérias do cérebro, AVC, paralisia, morte.

O drama de Daniele começou no ano passado. Ela procurou um ginecologista para tratar cistos ovarianos, que causavam fortes cólicas menstruais. A médica ofereceu duas opções: remover o ovário policístico ou usar uma pílula anticoncepcional para tentar tratá-lo. Daniele optou por não fazer a cirurgia. Preferiu manter o órgão porque pretendia engravidar. "Disse à ginecologista que era portadora de um fator genético que aumenta o risco de trombose", afirma. "Ela respondeu que, nesse caso, receitaria uma pílula com baixa dosagem hormonal."

Ao contrário do que a OMS recomenda, Daniele saiu do consultório com uma receita de Yasmin, nome comercial da pílula composta pelos hormônios drospirenona e etinilestradiol, fabricada pela Bayer. Ela tomou o remédio durante três meses. Em seguida, sofreu uma embolia pulmonar. Isso acontece quando um cóagulo formado em alguma veia do corpo chega aos pulmões e obstrui a passagem do sangue por uma artéria. As consequências foram gravíssimas: três paradas cardíacas, dois meses de internação, 40 dias em coma.

Quando finalmente acordou, Daniele era outra. Descobriu-se impotente, frágil. Não falava - fora submetida a uma traqueostomia, necessária para permitir a chegada de ar aos pulmões. Nem se movia - perdera muita massa muscular. Tudo, até mesmo a tarefa mais prosaica, tornou-se um obstáculo a superar: comunicar-se, comer, andar. O recomeço foi difícil - segue difícil. Ela ainda caminha com vagar e se cansa facilmente. Não dirige nem sai sozinha, mas já conseguiu se livrar da cadeira de rodas e da cadeira de banho. Os longos cabelos lisos caíram. Estão crescendo diferentes, "encaracolados como os de Reynaldo Gianecchini depois da quimioterapia".

Restou uma sequela explícita e permanente. Daniele perdeu os dez dedos dos pés. Eles precisaram ser amputados por causa de uma necrose, provocada pelos medicamentos que a mantiveram viva. "Quando vi o empenho das pessoas para me salvar e me deixar com um dano mínimo, não lamentei a perda dos dedos", diz. A lesão está sempre á mostra. No auge do verão carioca, Daniele comprou um vestido longo e estampado e uma sandália com duas faixas. As fitas que se ajustam sobre o peito dos pés permitem que ela ande sem perder o calçado. "A ausência dos dedos é parte do que sou. É um lembrança do que superei", diz. "Agora, vou lutar para que nenhuma outra mulher passe por isso."

Nos últimos anos, os Estados Unidos e a Europa passaram a debater intensamente os riscos dos anticoncepcionais. É uma discussão que nasceu após surgirem relatos de efeitos adversos graves e de centenas de mortes, principalmente entre consumidoras das pílulas à base de drospirenona - substância sintética semelhante à progesterona, produzida pelo organismo feminino. Com leve ação diurética, ela ajuda na eliminação do sal. Além de evitar a gravidez, o produto, lançado nos Estados Unidos em 2001 e no Brasil em 2003, prometia reduzir a oleosidade da pele, evitar inchaços e atenuar sintomas da tensão pré-menstrual. Foi um sucesso global - até que se acumularam os relatos dos sérios efeitos colaterais. Sobrevieram os processos contra o fabricante. Até o ano passado, a Bayer havia pagado US$ 1,7 bilhão para liquidar 8.200 ações de pacientes e familiares na Justiça americana. Mais casos estão pendentes em tribunais estaduais e federais dos Estados Unidos.

Depois de muita discussão e de um estudo financiado pelo governo americano, que envolveu 800 mil mulheres, a agência que controla medicamentos e alimentos nos Estados Unidos, a FDA, concluiu que os benefícios das pílulas à base de drospirenona superam os riscos. Não era o caso de retirá-las do mercado. Mas a agência exigiu que os fabricantes incluíssem nas bulas alertas mais claros e enfáticos sobre os riscos e as contraindicações desses remédios. Na França e no Canadá, essas pílulas passaram a ser vendidas apenas com retenção de receita.

No Brasil, pouco se fez. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, responsável por fiscalizar a indústria farmacêutica, não seguiu o exemplo dos americanos, dos franceses ou dos canadenses. A inação - para muitos, negligência - da Anvisa produz histórias como a de Daniele. Ela não pretende fazer campanha contra a pílula, o que seria uma insanidade num país, onde todos os anos, 13 milhões de adolescentes se tornam mães. Cerca de 30% delas engravidam novamente no primeiro ano após o parto. O controle sobre quando e como ter filhos é uma conquista que permitiu às mulheres assumir novos papeis na sociedade. Isso não significa, porém, que elas devam arriscar a vida por ignorar os riscos das diferentes formas de contracepção. Os prós e contras de cada método precisam ser conhecidos para que a escolha seja consciente e segura.

Até o final do ano passado, centenas de brasileiras com histórias semelhantes estavam isoladas. Cada uma aceitava a explicação de que era um caso raro, uma espécie de azarão da natureza, no universo dos 11 milhões de consumidoras de pílula no Brasil. Até que as redes sociais apresentaram um fato novo: o vídeo caseiro de Carla.

O desabafo pela webcam

Em setembro do ano passado, a professora universitária Carla Simone Castro, de 41 anos, decidiu gravar uma mensagem logo que deixou o Hospital Santa Mônica, em Goiânia. Apesar do tampão adesivo sobre o olho direito, ela encarou a webcam e fez um relato contundente sobre sua saúde. O objetivo era postá-lo em sua página pessoal no Facebook, para dar uma explicação aos alunos do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Brasília. Carla abandonara repentinamente as aulas na capital. Com fortes dores de cabeça, fora levada pela família de volta a Goiânia. Teve uma convulsão na sala do neurologista e precisou ser internada imediatamente. Sofreu uma trombose cerebral sete meses depois de começar a tomar a pílula Yasmin, a mesma do caso de Daniele. Quando ouviu o diagnóstico de uma doença desconhecida, Carla agarrou o celular e, ali mesmo, na cama do hospital, entrou nas bases dos artigos científicos. Digitou o termo "trombose cerebral" e encontrou 217 referências - muitas delas associavam o uso de pílula anticoncepcional ao aumento de risco da doença. Solteira e sem filhos, Carla não começou a tomar o remédio para evitar uma gravidez. Ele fora indicado por uma ginecologista para combater tumores benignos no útero, também chamados de miomas.

Antes de tomar o remédio, a professora leu a bula. Notou que, na 136ª linha, letras miúdas mencionavam o risco de ocorrência de trombose em pacientes de risco. Não parecia ser o caso dela. "Não tenho caso de trombose na família, não fumo, não sou diabética nem obesa", afirma Carla. "Mesmo assim, ela diz ter perguntado à ginecologista se a pílula era realmente segura. "A médica riu e respondeu que eu não me preocupasse porque, em 20 anos de profissão, nunca tinha visto um caso de efeito adverso grave provocado pela pílula." Carla se convenceu. Quando ela adoeceu, teve de perambular de médico em médico. Recebeu toda sorte de diagnóstico: sinusite, crise alérgica, enxaqueca, ansiedade... Perdeu um tempo preciosos até descobrir a real causa do problema. A trombose provocou três acidentes vasculares cerebrais, ou AVCs. Durante 55 dias, Carla enxergava tudo em dobro.

Um dos alunos decidiu compartilhar o vídeo, que já foi visto 3 milhões de vezes. A professora começou a receber outros vídeos caseiros, produzidos por mulheres com histórias semelhantes. No Facebook, elas criaram a página Vítimas de Anticoncepcionais - Unidas a Favor da Vida, uma comunidade que já soma 28 mil seguidores. Carla decidiu fazer uma pesquisa informal, porém detalhada (com dados de saúde, nome, endereço, nível de escolaridade e renda), com as participantes. Recolheu e tabulou informações sobre 305 casos de reações adversas graves. Descobriu, por exemplo, que 92% das mulheres não foram alertadas pela ginecologista sobre o risco de trombose. Carla pretende se associar a médicos e outros pesquisadores para investigar cada um dos casos. O objetivo é publicar um trabalho com rigor e validade científica. "Não podemos aceitar que continuem dizendo que esses casos são raros, se ninguém os relata e os investiga", afirma. Se uma paciente, sozinha, conseguiu reunir relatos de três centenas de  complicações graves em consumidoras de pílula, quantas outras podem existir no Brasil?" Não sabemos. Essas mulheres estão todas escondidas no anonimato", diz a química e advogada Eliana Pinto, ouvidora da Anvisa. A função dela é receber denúncias da sociedade e recomendar ações aos cinco diretores da agência. Segundo Eliana, muitas mulheres que sofrem danos não se animam a procurar o poder público. Agem dessa forma por descrença ou medo, apesar do sigilo garantido pela Anvisa.

Silêncio também é a praxe entre os médicos. Poucos são os que relatam às autoridades os casos de complicações após o uso de pílula. Entre janeiro de 2011 e julho de 2014, a Anvisa afirma ter recebido 90 notificações envolvendo anticoncepcionais compostos de drospirenona e etinilestradiol, como a Yasmin. Dessas, 70 relatavam reações graves, como tromboembolismo, embolia pulmonar, trombose venosa profunda e trombose cerebral. Em três dos casos, houve morte. Entre as notificações não há informação sobre a presença de outros fatores que possam ter contribuído para o problema.

"Os governos e as entidades médicas deveriam promover uma campanha para esclarecer a população e os profissionais sobre os riscos da pílula, quando usada de forma indiscriminada", diz Eliana. Ela fez uma série de recomendações à diretoria da Anvisa. Uma delas foi acolhida pelos diretores: a atualização do informe sobre riscos das pílulas no site da agência e o envio da informação, por oficio, aos Conselhos de Medicina e Farmácia. Em dezembro, a agência reafirmou que os benefícios das pílulas continuam a superar os riscos, mas incluiu no alerta uma informação da maior relevância: qualquer mulher (e não apenas aquelas com determinadas características genéticas) pode sofrer trombose depois de usar anticoncepcionais hormonais.

Eliana acredita que é preciso fazer mais. Segundo ela, não basta que as bulas mencionem os riscos: "Trombose pode matar. Isso deveria estar estampado na embalagem, em letras garrafais". A ouvidora recomendou que esse ponto seja colocado em discussão pela diretoria da Anvisa. Não há data para que esse debate ocorra. Talvez jamais aconteça. "Essa demanda precisa vir da sociedade", diz Eliana. Ela fez duas recomendações essenciais, que a Anvisa ainda não discutiu. A primeira: estimular os médicos a pedir exames genéticos de tendência à trombose antes da prescrição do medicamento. A segunda, não menos simples e igualmente importante: informar as pacientes sobre os sintomas de trombose e AVC, para que, em casos de reações, elas possam procurar socorro a tempo. A ouvidora também recomendou que a diretoria discutisse a possibilidade de efeitos adversos graves pelos médicos, embora saiba que essa não é uma atribuição da agência - e sim do Conselho Federal de Medicina.

Qualquer pessoa pode sofrer uma trombose - até mesmo mulheres que não usam contraceptivos hormonais. A gravidez também aumenta, em até quatro vezes, o risco de sofrer um coágulo. isso ocorre porque durante a gestação a quantidade de sangue aumenta alguns litros. E, nos primeiros meses depois do parto, o sangue torna-se mais coagulável. Há outras situações perigosas. Nas mulheres que têm enxaqueca, fumam e tomam pílula, o risco de sofrer um AVC é 22 vezes mais elevado. Pacientes com esse perfil deveriam ser corretamente informadas pelos médicos para ter a chance de optar por outros métodos. Quantas sabem disso? Basta conversar com um grupo de amigas fumantes que tomam pílula para descobrir que poucas (talvez nenhuma) foram alertadas sobre esse risco.

Segundo as autoridades sanitárias americanas e europeias, um coágulo ocorre em cerca de dez mulheres, a cada 10 mil consumidoras de pílulas à base de drospirenona. As que tomam as formulações mais antigas também estão sujeitas ao problema, mas o risco é inferior. Ele afeta, em média, seis pacientes a cada 10 mil. Se essa estimativa for transposta, de forma rudimentar, para o universo de 11 milhões de consumidoras de pílula no Brasil, é possível que existam cerca de 11 mil casos semelhantes aos de Daniele e Carla?

"De jeito nenhum", diz a médica Marta Franco Finotti, presidente da Comissão Nacional Especializada em Anticoncepção da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia. "Embora não existam estudos desse tipo feitos no Brasil, é impossível que haja essa quantidade toda de reações graves." Segundo ela, a estimativa global não pode ser aplicada à população brasileira." As pílulas são seguras, usadas por 100 milhões de mulheres no mundo e até mais estudadas que os antibióticos", diz. Marta afirma que a razão do problema é a banalização do uso da pílula. "Os ginecologistas precisam ter critério para recomendar esses remédios, mas muitos não conhecem as recomendações da OMS", diz. "Se todos eles seguissem essas normas, já seria maravilhoso."

Os efeitos adversos das pílulas são, de fato, um problema que os ginecologistas tendem a minimizar. Postura bem mais cautelosa é adotada pelos neurologistas. Enquanto os ginecologistas prescrevem a pílula a mulheres saudáveis, aos neurologistas cabe agir no momento das tragédias, quase sempre marcadas por sequelas e mortes. "Não podemos demonizar as pílulas anticoncepcionais nem minimizar os riscos delas", diz o neurocirurgião Francisco Bastos, diretor clínico do Hospital Santa Mônica, em Goiânia. "Os efeitos adversos graves são raros, mas quando eles acontecem o resultado é desastroso". Bastos trabalha para preservar a vida de Carla. A equipe dele tenta fechar fístulas (ligações anômalas entre uma artéria e uma veia) que se abriram no cérebro da professora. Essas ligações são perigosas, porque podem causar hemorragias fatais. Fechá-las envolve um procedimento de altíssimo risco. Carla sobreviveu ao primeiro. Pode precisar de mais dois.

Procurada por ÉPOCA, a Bayer, fabricante da pílula Yasmin, decidiu não dar entrevista. Em nota, afirma que a comissão europeia que avaliou os riscos dos anticoncepcionais concluiu que "os benefícios dos contraceptivos hormonais combinados na prevenção da gravidez não planejada continuam a superar os riscos e que a possibilidade de tromboembolismo venoso, associada ao uso de contraceptivos hormonais combinados, é pequena". Segundo a empresa, "Yasmin é eficaz e tem um perfil de segurança (risco-benefício) favorável, quando usada da forma indicada na bula aprovada pelas agências de saúde de cada país".

Sozinha, no chão, com um aperto no peito

No ano passado, a administradora de empresas Simone Vasconcelos Fator, de 34 anos, sofreu uma embolia pulmonar em São Caetano do Sul, na região metropolitana de São Paulo. Fazia apenas três meses que usava a pílula Iumi, fabricada pela Libbs e receitada por um ginecologista. Assim como a Yasmin, essa pílula é composta pelos mesmos dois hormônios combinados: drospirenona e etinilestradiol. Mãe de dois filhos (Leonardo, de 5 anos, e Guilherme, de 8), Simone não tinha fatores de risco que pudessem contraindicar o uso de anticoncepcional. Não é obesa, hipertensa, diabética, fumante nem tem casos de trombose na família. O ginecologista chegou a fazer essa pergunta e solicitou os exames de sangue de rotina antes de prescrever o anticoncepcional. Simone leu a informação sobre risco de trombose na bula, mas o médico a tranquilizou ao dizer que a concentração hormonal na pílula era baixa.

Ao final da terceira caixinha, ela começou a sentir um cansaço inexplicável. O percurso de quatro quarteirões, que sempre fez a pé para buscar o filho mais velho na escola, tornou-se cada vez mais difícil. Um dia, sentiu um forte aperto no peito, embaixo dos seios. Desamparada, sentou-se na calçada, pressionou as pernas contra o peito e esperou a dor passar. A sensação durou alguns longos minutos. Ainda com falta de ar, ela conseguiu se levantar, prosseguir até a escola e levar o filho para casa. Nos dois dias seguintes, a pressão arterial subiu e surgiram fortes dores de cabeça. Simone passou dois dias na UTI e mais seis no quarto. Por sorte, o coágulo era pequeno e foi descoberto a tempo. Durante seis meses, ela precisou tomar anticoagulante e se cercar de cuidados e restrições alimentares para evitar o risco de sangramento. "Só pensava nos meus filhos. Tinha medo de me cortar enquanto cozinhava para eles", diz. Tudo isso poderia ter sido evitado, se a informação fosse clara e disponível." O erro do meu ginecologista foi não ter me informado sobre os riscos da pílula", diz Simone. "Quando o médico omite os riscos, ele tira da paciente a capacidade de avaliação. Cabe a mim decidir se aceito correr o risco de morrer para prevenir uma gestação."

Em nota, a Libbs, fabricante do medicamento, afirma que "a formulação de Iumi (drospirenona e etinilestradiol) é segura". Análises recentes confirmam que o tromboembolismo venoso (TEV) é um evento raro, que afeta dez em cada 10 mil consumidoras de pílulas, no geral. A empresa ressalta que "a bula de Iumi alerta para os fatores de risco associados ao TEV, que incluem tabagismo, obesidade e história familiar de tromboembolismo venoso, além de outras condições que contraindicam a utilização da pílula".

Simone não tem nenhum desses fatores de risco. Durante a estada no hospital, ela foi submetida também aos exames genéticos que apontam a existência de características que tornam a mulher mais propensa á formação de trombose. Descobriu que não é portadora das mutações que aumentam o risco de trombofilia. Simone é um exemplo de que complicações podem surgir até mesmo em mulheres sem fatores de risco. "É fundamental que esses exames sejam oferecidos também no SUS e que os médicos sejam obrigados a notificar casos como o meu", diz.

Não basta confiar apenas no histórico dos parentes. Às vezes, a paciente que sofre embolia pulmonar ou trombose cerebral é o primeiro caso da família. "Em mais de 90% dos casos, as mulheres não sabem que têm predisposição genética à trombose", diz Gisele Sampaio Silva, coordenadora do Departamento de Doenças Cerebrovasculares, Neurologia intervencionista e Terapia Intensiva em Neurologia da Academia Brasileira de Neurologia. Por isso, o exame genético é tão importante. Ele é simples, pode ser feito com uma amostra de saliva ou sangue e costuma ser coberto pelos planos de saúde. No SUS, não é oferecido de forma rotineira.

A maioria das mutações genéticas ocorre em três genes principais. O geneticista Ciro Martinhago, da Clínica Chromosome Medicina Genômica, em São Paulo, afirma ter feito mais de 10 mil testes desse tipo. Em uma pesquisa com dados de 1.000 mulheres que fizeram o exame mesmo sem ter suspeita de nenhum problema, ele concluiu que uma em cada dez tem alterações em pelo menos um desses genes.

Quem herda a mutação não vai, necessariamente, ter a doença. Mas precisa saber que tem um risco mais elevado do que o da população geral. "Não se trata de uma característica extremamente rara. Estamos falando em algo que precisa ser conhecido porque aumenta o risco de trombose em 10% das mulheres", afirma. Segundo ele, a maioria dos ginecologistas não pede o exame antes de prescrever anticoncepcionais. "Há uma desinformação enorme, mesmo entre os médicos." Um exame desse tipo traz uma informação relevante em três fases da vida da mulher: na puberdade (quando vai escolher um método contraceptivo), na gravidez e na menopausa. Quem herda a mutação não deve pensar mil vezes antes de tomar pílula apenas na juventude. Precisa saber que, se fizer reposição hormonal na maturidade, pode sofrer os mesmos danos.

De hospital em hospital, com a neta no colo

Quando uma menina de 16 anos chega ao pronto-socorro reclamando de fortes dores de cabeça, é provável que os médicos suspeitem de tudo - menos de trombose cerebral. Em setembro de 2013, a estudante Thainá de Menezes Fernandes, que mora com o avô paterno, buscou ajuda em dois hospitais particulares: um em Santos e outro na Praia Grande, no litoral paulista. Saiu com três suspeitas descabidas: efeito da menstruação, dos exageros do churrasco ou da vista maltratada pelo uso do smartphone. Enxergando tudo em dobro, fraca e sem conseguir se firmar sobre as pernas, Thainá era amparada pelo avô. "Precisei carregá-la no colo, de hospital em hospital, porque ela foi perdendo a força no lado direito do corpo", diz Sérgio Fernandes, avô de Thainá. "A gente confia nos médicos, mas é um desespero quando ninguém descobre o que está acontecendo."

Desde os primeiros sinais de que algo não ia bem até o diagnóstico correto, passaram-se seis dias. Depois que exames afastaram a possibilidade de meningite, os neurologistas da Santa Casa de Santos descobriram que a trombose cerebral havia provocado um AVC. Descartados outros fatores de risco, restou apenas o anticoncepcional Tâmisa 20 (gestodeno e etinilestradiol), receitado por uma ginecologista para evitar gravidez e combater a acne. Thainá usava a mesma marca desde os 14 anos. Ela passou uma semana e meia na UTI. "Diziam ao meu avô que talvez eu saísse viva, mas na cadeira de rodas", afirma. Depois de um mês de internação, Thainá precisou de muita fisioterapia para conseguir voltar a andar. Saiu do hospital inchada e vesga. Assim permaneceu por três meses. "Chorava todos os dias quando me olhava no espelho", diz.

Thainá se recuperou e, no início deste ano, entrou na faculdade de odontologia. Sempre que surge uma chance, aconselha as amigas. "Não digo para ninguém parar de tomar pílula, mas reforço a importância de ir ao ginecologista e pedir o exame de trombofilia", afirma. Ela fez o teste genético depois da internação. O exame será repetido porque o resultado não foi conclusivo. A recomendação do neurologista foi clara: "Por enquanto, nada de pílula".

Em nota, a Eurofarma, fabricante do Tâmisa 20, afirma que os anticoncepcionais orais combinados vêm se destacando como um grupo de fármacos dos mais estudados em todo o mundo. "É importante que as pacientes leiam a bula dos seus medicamentos para saber quais eventos adversos eles apresentam, e com qual frequência. Quanto à segurança cardiovascular, o tromboembolismo venoso, o infarto do miocárdio e o acidente vascular cerebral acontecem mais frequentemente quando a usuária apresenta outros fatores de risco que contribuem para maior incidência desses eventos, como hipertensão, diabetes, tabagismo, dislipidemia, entre outros."

A leitura da bula, atitude sensata e da maior importância, não evitou que a saúde das quatro mulheres citadas nesta reportagem fosse gravemente ameaçada. A professora Carla enfrenta uma aflição intermitente: um zumbido pulsátil do meu coração", diz. Nos últimos meses, ela passou por 183 exames. Vinte e sete deles foram para rastreamento genético. Há duas semanas, descobriu uma alteração no gene da protrombina. O risco da doença em mulheres que têm essa mutação e tomam pílula é 60 vezes mais elevado. "Se a ginecologista tivesse pedido um exame de R$ 257, todo o meu sofrimento teria sido evitado." Em abril, ela deve passar por uma nova cirurgia. Os médicos vão injetar mais um pouco de cola cirúrgica para tentar fechar as fístulas do cérebro. Sobre o risco desse procedimento, ela foi muito bem informada. Se a cola vazar, ela pode perder a fala, os movimentos ou a vida. A cética professora quer acreditar que essa é uma possibilidade remota. "Não pretendo virar mártir dessa história." Precisamente uma opção que muitas brasileiras ainda não têm.



(texto publicado na revista Época nº 877 - 30 de março de 2015)

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