No fim do mundo. É como se sente a pequena protagonista de Indomável Sonhadora diante do desaparecimento iminente de seu pai e do alagado da Louisiana no qual eles estão enraizados
Morando com o pai doente e alcoólatra num pardieiro em um alagado no sul da Louisiana - que os locais chamam de "Banheira" -, a pequena Hushpuppy (ou "bolinho de milho") vê, onde o espectador talvez enxergue só sujeira e degradação, um mundo mágico, feérico e palpitante com vidas misteriosas. Hushpuppy abraça cães, galinhas ou porcos e os aperta contra o ouvido, para sentir o coração eles batendo. De calçãozinho e galochas, corre por esses domínios dos quais é soberana, mas cuja existência o mundo em geral ignora: a Banheira não é um lugar convidativo, e sua miséria é genuína demais para que se possa considerá-lo pitoresco. Da mesma forma que Hushpuppy e seu pai, porém, os demais moradores estão enraizados ali para o que der e vier. Quando vêm a tempestade e a inundação, só uns poucos fogem. A maioria continua vagando pelos pântanos em barcos improvisados, resgatando-se uns aos outros e caindo na bebedeira para comemorar - e fugindo dos socorristas que tentam evacuar a área como se estes fossem o demônio. Situa-se obstinadamente nessa linha difusa entre fato e percepção, registrando o real conforme o olhar assombrado por fantasias de uma criança, é o feito maior de Indomável Sonhadora (Beasts of the Southern Wild, Estados Unidos, 2012).
Quvenzhané Wallis, que tinha 6 anos à época em que o filme foi rodado (agora está com 9), é de fato uma dessas crianças capazes de se entranhar em um papel de maneira meio miraculosa (É quase tão boa - quase - quanto a Mel Maia de Avenida Brasil). Melhor ainda é Dwight Henry, padeiro recrutado localmente pelo diretor Benh Zeitlin e pela roteirista Lucy Alibar para viver o pai da menina, o que ele faz com desespero feroz: está à morte, mas não quer de jeito nenhum deixar a vida e a filha. Entre seu desaparecimento e o da Banheira - menos sob as águas que pelo avanço de um modo de vida que os locais desprezam - o mundo de Hushpuppy está ruindo, uma angústia que ela representa na forma de feras pré-históricas rondando a paisagem. Um aspecto incômodo, no entanto, turva esse filme admirável: a maneira simplista como direção e roteiro transformam a resistência dos moradores da Banheira em um ato político heroico, com toda a grandiloquência que costuma acompanhar esse deslumbramento ingênuo com os bolsões culturais "autênticos".
(texto de autoria de Isabela Boscov e publicado na revista Veja nº 2309 - fevereiro 2013)
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