sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Os papas da renúncia - Mario Sabino


Com Bento XVI, eles foram sete na história da Igreja, desde que se encare o conceito com elasticidade. Hoje, contudo, a saída de um papa suscita ainda mais questões

Na história da Igreja Católica, o papa Bento XVI é o sétimo a renunciar. Os outros seis estão listados no Dictionnaire Historique de la Papauté (Dicionário Histórico do Papado), coordenado pelo eminente historiador francês Philippe Levillain. A renúncia, qui, é um conceito elástico, porque inclui a aceitação da deposição do Trono de Pedro, sem resistência aos inimigos que obrigaram o pontífice a sair. Todos os seis nomes situam-se entre o fim da Antiguidade e a Alta Idade Média, período de grandes turbulências na instituição ainda em formação. Os renunciantes são os seguintes (as datas do pontificado, que variam conforme a referência, estão de acordo com o "Anuário Pontifício"): Martinho I (649-655), Bento IV (900-903), João XVIII (1003-1009), Silvestre III (1045), Bento IX (1047-1048), Celestino V (1294) e Gregório XII (1406-1415). O mais célebre deles é Celestino V, que Dante Alighieri colocou no Inferno, em sua Divina Comédia, entre os injustos e os neutros, ao lado de Pôncio Pilatos, mas que foi canonizado por ter fundado a Ordem dos Celestinos. Bento XVI é um admirador seu.

A renúncia de Celestino V foi a primeira a ter formalidade e a criar controvérsia jurídico-teológica. A legitimidade de seu sucessor, Bonifácio VIII, seria questionada pelos cardeais da então poderosa família romana Colonna, sob os argumentos de que: a) a autoridade pontifícia, conferida por Deus, por intermédio do Espírito Santo, só poderia ser retirada pelo próprio Deus; b) o casamento que unia o papa à Igreja era indissolúvel; c) a renúncia de um pontífice não poderia ser permitida porque abriria flancos no governo da Igreja. Bonifácio VIII, no entanto, terminou seu mandato, e, pouco mais de um século depois, outro papa seria deposto sem relutância. A renúncia de um papa está prevista no Código de Direito Canônico em vigor, que foi regulamentada sob João Paulo II, com redação de Bento XVI, e estabelece que o papa pode deixar o Trono de Pedro, desde que por vontade própria, como fez Joseph Ratzinger. O debate sobre suas consequências já começou. Não resta dúvida de que, ao afirmar que um papa tem de estar física e mentalmente habilitado para comandar a Igreja, dificilmente haverá outro caso como o de João Paulo II, que terminou seu pontificado mal conseguindo balbuciar e andar. Em Roma, já se cogita, inclusive, em fixar uma idade de aposentadoria compulsória para os papas, assim como ocorre com os bispos (75 anos) e cardeais (80). "Se já existe um limite para bispos e cardeais, não se pode excluir que, também para o papa, seja possível estabelecer a mesma coisa. O princípio não é absurdo, é só questão de bom-senso", disse o cardeal suíço Georges Cottier, avalizando a ideia lançada pelo teólogo alemão Hans Küng, considerado até há pouco tempo um rebelde maldito, e pelo cardeal americano Timothy Dolan.

São muitos os que discordam desse ponto de vista, por ver contradição no que seria bom-senso. Se um papa é infalível, como determinado em 1870, haveria uma idade exata a partir do qual ele se tornaria necessariamente falível? Outra pergunta: poderiam cardeais, homens falíveis, dar um prazo de validade a alguém escolhido pelo Espírito Santo, o vértice da Santíssima Trindade que, segundo a doutrina, guia os votos dos eleitores de um conclave? Por último, apesar de prevista no Código de Direito Canônico, a renúncia de Bento XVI lança dúvidas sobre a manutenção dogmática do princípio da indissolubilidade conjugal. Se a um papa é permitido renunciar ao que seria um casamento com a Igreja, abençoado pela vontade divina, por que marido e mulher não poderiam divorciar-se?

Um aspecto também suscitado pela saída de Bento XVI é a possibilidade de que o novo pontífice convoque um concílio - as grandes reuniões da Igreja que acontecem a intervalos de centenas de anos, para redefinir os rumos da instituição. Isso, na opinião da maioria dos vaticanistas, é remoto. Mas o último deles, o Vaticano II, aconteceu há cerca de cinquenta anos, pouco tempo para uma Igreja que caminha com a vagarosidade dos séculos. Além disso, o concílio, convocado por João XXIII e terminado sob Paulo VI, ainda é uma obra em aberto.  A tão almejada colegialidade, por exemplo, que incluiria os bispos em decisões hoje exclusivas aos cardeais, permanece um objetivo inalcançado - e talvez seja inalcançável em qualquer época. A verdade é que, se o novo papa fizer a limpeza moral que a renúncia de Bento XVI exige, já estará prestando um grande serviço ao catolicismo.




(texto publicado na revista Veja nº 2309 - fevereiro 2013)





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