domingo, 5 de julho de 2015

Cremar para libertar - Elsie Dubugras


Morrer, para o balinês, significa libertar-se. No entanto, enquanto não for cremado, o homem estará sujeito ao ataque de terríveis demônios, que desejam impedi-lo de chegar até o paraíso.

Ao longo da vida, de uma forma ou de outra, minha atenção parece ter estado sempre voltada para o campo da religiosidade. Assim devia ser - creio eu -, já que acabei fazendo dessa curiosidade nata pela área o alicerce da minha carreira jornalística. Mesmo enquanto não foi dirigido de forma consciente para o mundo da pesquisa, esse interesse me ajudou a acumular conhecimentos importantes para o trabalho que viria a realizar na área esotérica.

Nos meus tempos de Pan Am, quando viajar era algo mais ou menos corriqueiro para mim, tive a oportunidade de conhecer vários países, buscando sempre travar contato com o lado místico de cada povo. Lembro que, em uma das viagens, no final da década de 60, acompanhei de perto os rituais de cremação que acontecem em Bali, uma das 13.677 ilhas da Indonésia, hoje reconhecida no Ocidente por sua beleza exótica. A cerimônia me marcou tanto que resolvi saber mais sobre as crenças que as envolviam.

Segundo os balineses, os mortos só têm paz depois que seu corpo for cremado. Até que isso aconteça, estarão sujeitos aos maus espíritos. Assim que morre, o balinês deve ser retirado de casa o mais breve possível. Porém, isso não deve ser feito pela porta da frente, pois os demônios estão lá à sua espera. Para enganá-los, o cadáver é retirado pela porta dos fundos e chega à rua por um buraco feito no muro do quintal. Se pertencer a uma família rica, o morto é embalsamado e, até o dia da cremação, guardado em prateleiras no Pura Dalem (O Templo dos Mortos), construído além dos limites do povoado. Os pobres aguardam enterrados no cemitério, até que os parentes ricos resolvam cremar seus mortos - uma cerimônia bastante dispendiosa - e os incluam no ritual. Somente no primeiro dia da cerimônia o pobre desenterra seu parente falecido. Muitas vezes, o que resta do corpo são apenas alguns ossos. Um único ossinho, no entanto, é suficiente, já que o padanda (sacerdote) tem o poder de insuflá-lo com o espírito do morto. Na ausência de restos mortais, um boneco é usado com a mesma finalidade. Depois da insuflação, o objeto que representa o defunto pobre é levado para o Pura Dalem, onde, juntamente com os mortos embalsamados, vai passar pelas demais cerimônias.

Somente no terceiro dia, depois de vários rituais - entre eles o da absolvição dos pecados veniais -, é que haverá a cremação de fato. Enquanto os corpos queimam, o povo dança e canta ruidosamente, feliz porque seus parentes e amigos estão finalmente salvos, a caminho do paraíso de Indra.

Para um espírito acostumado a ver lágrimas e dor durante qualquer funeral, presenciar tamanha alegria diante de uma cerimônia dessas é, num primeiro momento, bastante estranho. Passado o choque inicial, porém, acaba sendo reconfortante saber que aquelas pessoas, assim como a maioria dos povos orientais, aprenderam a dar à morte um verdadeiro significado, o da libertação - sentido que nós, ocidentais, mesmo que altamente espiritualizados, ainda não assimilamos muito bem.




(texto publicado na revista Planeta edição 288 - ano 24 - nº 9 - setembro de 1996)






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