domingo, 29 de novembro de 2015

Não somos bípedes à toa - Carolina Melo


Novos estudos revelam que o hábito de ficar em pé traz inúmeros benefícios ao organismo - muitas vezes, até maiores do que uma caminhada

Quantas horas por dia você passa em pé? Prepare-se para ouvir a pergunta de seu médico, se é que ela já não foi feita. Cada vez mais comum nos consultórios, das mais variadas especialidades, a singela indagação tem sido utilizada pelos profissionais como uma nova e promissora ferramenta de diagnóstico e tratamento. As modernas linhas de pesquisa na área da fisiologia têm revelado que o esforço natural do corpo para manter-se ereto faz bem à silhueta, previne doenças, melhora o desempenho intelectual e a memória. O mais recente estudo sobre o assunto, publicado na revista científica American Journal of Preventive Medicine, revelou ainda o impacto de pequenos movimentos  feitos em pé na diminuição do risco de mortalidade. Os pesquisadores compararam os hábitos de 12 000 pessoas com idade entre 37 e 78 anos, ao longo de doze anos. Elas ficavam sentadas por cerca de sete horas. Muitas só deixavam a cadeira para realizar atividades essenciais, como ir ao banheiro e fazer as refeições. Outras tinham o hábito de se levantar para executar pequenas tarefas no próprio escritório. A conclusão: as pessoas que se mexiam menos correram um risco 30% maior de morrer em decorrência de doenças associadas ao sedentarismo, como as afecções cardiovasculares, em relação aos outros voluntários do estudo. Fala-se aqui de benefícios associados a movimentos extremamente rotineiros e comedidos, banais. É levantar-se para atender o celular. É dar alguns passos até a mesa do colega ao lado em vez de mandar uma mensagem pelo celular ou e-mail. É sair da mesa para tomar um café na máquina ali pertinho.

Os conhecimentos sobre os proveitos de gestos tão discretos têm se aprofundado a passos largos. Em junho, a revista científica British Journal of Sports Medicine publicou um estudo que ditava o tempo ideal para manter-se em pé em prol da saúde: duas horas por dia. Isso representa. ao longo de nove horas de trabalho, apenas treze minutos por hora. O ato de ficar de pé, e por tão pouco tempo, é suficiente para beneficiar várias estruturas do corpo. A tensão muscular necessária para manter o corpo ereto, em equilíbrio, facilita a absorção da glicose pelas células dos músculos com menor mediação de insulina, poupando o trabalho do pâncreas. Aumenta o consumo de oxigênio celular, melhorando o desempenho cardiovascular, por exemplo. Depois de duas horas, o corpo ereto queima 20% mais calorias em comparação ao sentado, independentemente de o tempo ser corrido ou fracionado. Diz o fisiologista Paulo Zogaib, da Universidade Federal de São Paulo: "Pequenos gestos feitos em pé podem ter mais efeito no gasto calórico do que uma caminhada".

Na cola das descobertas médicas, surgem os primeiros recursos para estimular a postura ereta na rotina diária. O Apple Watch, o relógio da Apple, lançado em abril deste ano, tem um sistema para contabilizar o tempo que o usuário permanece em pé. Sim, apenas em pé. A ferramente emite um alarme que avisa quando se está prestes a permanecer sentado por uma hora. Há sinais de mudança também no mundo corporativo. Empresas de tecnologia, como o Facebook e o Google, começam a adotar mesas adaptadas para estimulara a posição ereta entre seus funcionários. Batizadas de standing desks (mesas para ficar em pé, em tradução livre), elas podem ter a altura regulada de modo a ser possível trabalhar em pé. Na Escandinávia, cerca de 90% dos escritórios já oferecem essa opção.

Intuitivamente, o escritor americano Ernest Hemingway (1899-1961) dizia sentir-se mais disposto e concentrado escrevendo em pé. Em uma célebre entrevista com o escritor para a revista literária americana The Paris Review, em 1958, o jornalista George Plimpton descreveu o ambiente de trabalho de Hemingway durante o período em que este morou em Cuba: "Seguindo um hábito que adquiriu desde o começo, Hemingway escreve de pé. Calçando um par de enormes mocassins, pisando sobre uma pele já gasta de antílope, a máquina de escrever e a lousa se encontram à sua frente, na altura do tórax". Leonardo da Vinci e Winston Churchill também mantinham o hábito.

Sob o ponto de vista evolutivo, ficar em pé foi fundamental para a sobrevivência de espécies. Os primeiros bípedes surgiram há cerca de 6 milhões de anos, mas não conseguiam manter a postura ereta por muito tempo. Dois milhões de anos depois, porém, um acidente natural ocorrido na África, que modificou drasticamente a vegetação local, pode ter sido a causa do aparecimento dos bípedes mais resistentes. Uma seca transformou a floresta em savana. Sobreviveram os que se adaptaram ao terreno plano, com poucas árvores. Entre eles, o Australopithecus anamensis. Diz o neurocientista Renato Sabbatini, da Universidade Estadual de Campinas, estudioso do assunto: "Com o formato dos ossos das pernas e da pélvis mais adaptado, eles conseguiam manter a postura ereta, embora seu crânio, mandíbulas e dentes ainda fossem semelhantes aos de chimpanzés". A cabeça erguida facilitou uma visão aprimorada dos inimigos. Com o tempo, deflagrou-se a necessidade de utilizar as mãos para desenvolver ferramentas e carregar alimentos, o que serviu de estímulo aos neurõnios. Foi assim que surgiu o Homo erectus, uma espécie já com o cérebro mais desenvolvido e maior capacidade de raciocínio e de locomoção por longas distâncias. A evolução é a prova irrefutável de que, embora o ser humano moderno queira - e goste de - conforto, ficar de pé por alguns minutos tem um impacto extraordinário na sua sobrevivência.


O homo erectus

O esforço natural do organismo para manter-se em pé faz emagrecer, previne doenças, melhora o desempenho intelectual e a memória

Memória e desempenho intelectual

O cérebro entra em estado de alerta. Com a atenção, aprimora-se a capacidade de memória, aprendizado e raciocínio. Estudar em pé melhora em 20% o desempenho escolar.

Calorias

Depois de duas horas, o corpo ereto queima 20% mais calorias em comparação ao sentado - não importa se o tempo é corrido ou fracionado.

Trombose

O mecanismo de retorno do sangue ao coração é estimulado pela tensão natural dos músculos, sobretudo da panturrilha. Previne-se, assim, a doença, que se caracteriza pela formação de coágulos.

Infarto e derrame

O consumo de oxigênio celular é maior, o que melhora o desempenho cardiovascular e previne as doenças.

Diabetes

A atividade muscular facilita a absorção da glicose pelas células do próprio músculo com menor mediação de insulina, poupando o trabalho do pâncreas. Após um pico de açúcar, as taxas em um corpo ereto voltam ao normal mais rapidamente, evitando-se a afecção.

Artrose e artrite

A produção do fluído que lubrifica as articulações (líquido sinovial) é aumentada, evitando-se afecções associadas à degeneração desses tecidos.


(texto publicado na revista Veja edição 2446 - ano 48 - nº 40 - 7 de outubro de 2015)

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