Nossa repórter o acompanhou em sua visita por aqui e nos conta porque esse homem de aparência frágil é considerado um grande líder espiritual dos nossos tempos
No Aterro do Flamengo, bem em frente ao antigo Hotel Glória, vislumbrei ao longe uma manchinha com vestes cor de vinho correndo em minha direção. Míope e obstinada em não usar óculos, me esforçava para identificar o que eu imaginava ser um monge tibetano chamando meu nome. Levei alguns minutos para conseguir reconhecer Geshe Jamyang, professor de filosofia e monge de quem havia recebido minhas primeiras iniciações budistas. Geshe me acenou feliz e gritou a plenos pulmões as únicas palavras que provavelmente sabia em inglês: "Come to see Dalai Lama! Come, come, come!", disse ele com um enorme sorriso de contentamento.
Na época, era assessora de impresa da Fundação SOS Mata Atlântica e estava no Rio de Janeiro para trabalhar na Eco 92. Portanto, também tinha milhões de coisas para fazer. Porém, ir ver o Dalai Lama era um convite bem provocante. Pensei nos bons ventos que me faziam trombar com Geshe Jamyang. E vi então o folheto da programação: o Dalai Lama falaria a jornalistas e funcionários de ONGs especializadas em meio ambiente dali a 20 minutos. Ora, eu era jornalista. Eu trabalhava numa ONG. O que esperava então?
Já havia visto o Dalai Lama pela primeira vez três dias antes, durante uma recepção num palco ao ar livre onde ele se encontrou com representantes de várias linhagens espirituais. Agora era diferente: ele estaria ali, pertinho, nítido, e eu certamente teria outra impressão. Já estava enlevada pelos mantras quando Sua Santidade entrou na sala de conferências. Houve um murmúrio geral de respeito, e todos se levantaram. Ele se sentou na minha frente. Alto, musculoso (boa parte dos monges tibetanos pratica musculação), voz potente, postura ereta, um guerreirão. Foi um choque. Não esperava ver tanta virilidade e força num líder religioso. Tinha para mim que a prática religiosa acabava por emascular um praticante muito dedicado. Não parecia ser o caso de Lhamo Dondup, que recebeu o nome de Tenzin Gyatso quando foi reconhecido como líder espiritual e político do povo tibetano. Aos 56 anos de idade, ele parecia um chefe nativo do longínquo País das Neves, como o Tibete é conhecido por seu povo.
Acredito que o impacto de sua presença tenha sido semelhante para todos. Porém, poucos minutos depois, ele desanuviava a plateia que esperava um homem sério, solene e circunspecto. Com uma sucessão de gargalhadas de sonoros ho-ho-hos, e eventuais hi-hi-his marotos quando compartilhava um segredinho entre ele e o público, o Dalai Lama tornou-se imediatamente alguém próximo, um dos nossos. Sua sabedoria jorrava, mas de modo familiar, afetivo, como se ele fosse igual a qualquer um ali, não a emanação viva de Avalokistevara, o Buda da Compaixão, como o budismo tibetano o vê. Considerado um bodisatva, um ser que renuncia ao Nirvana para voltar a encarnar na Terra e ajudar as pessoas, ele cumpria maravilhosamente bem sua missão de dissipar os véus da ignorância humana. Tenzin Gyatso era um gigante da comunicação. Impossível não se encantar com ele. E com a vibrante energia que parecia irradiar do seu coração.
Tenzin Gyatso nasceu em um vilarejo do Tibete e aos 2 anos foi reconhecido como a reencarnação do Dalai Lama anterior, o chefe espiritual e político dos tibetanos. Foi, então, conduzido ao trono, criado num ambiente monástico fechdo, e aos 23 anos foi obrigado a fugir do país com a invasão da China, que considera o Tibete uma das suas províncias. Sua Santidade constituiu um governo no exílio, o budismo tibetano se espalhou pelo mundo e ele recebeu as mais altas honrarias do Ocidente, inclusive o Prêmio Nobel da Paz (1989). Hoje, aos 76 anos, reconhece que os homens de sua geração "estão começando a dizer tchau para esse mundo", como ele revelou ao numeroso público que o acompanhou durante sua quarta visita ao Brasil, em outubro passado.
Mesmo assim, ainda planeja voltar pela quinta vez ao nosso país este ano, exatamente 20 anos depois de sua primeira visita durante a Eco 92, quando o conheci. O Tibete continua sob o poder da China desde 1959, as crianças tibetanas falam sua língua apenas em casa e a capital, Lhassa, virou um lugar turístico para os milhares de visitantes chineses que aportam em sua suntuosa estação de trem, que une umbilicalmente o território tibetano à China numa estrada de ferro de 2 mil quilômetros. A miscigenação entre o povo local e os imigrantes chineses que foram morar no País das Neves nestes últimos 50 anos é incentivada.
Sábio, hoje o Dalai Lama não luta mais pela independência do seu país, mas por sua autonomia como província. Do seu lado, a diplomacia chinesa continua pressionando os países do mundo a não recebê-lo como chefe de Estado e, por isso, sua presença pode causar certo desconforto aos governos ocidentais. Em sua última viagem ao Brasil, por exemplo, seu visto levou cerca de nove meses para ser emitido.
Parte de sua vida se transformou em dois filmes, Kundun e Sete Anos no Tibete. No Brasil, publicou mais de 30 livros, a maioria best-sellers. Ainda hoje, Tenzin Gyatso é um dos líderes mais importantes e influentes do mundo, embora o auge de sua fama tenha ocorrido durante as décadas de 80 e 90. Mas quem é o homem atrás de tão extraordinária trajetória de vida?
No alto das montanhas
"Sou apenas um monge", diz Tenzin Gyatso em muitas entrevistas e palestras. A descrição do seu quarto feita pelo psiquiatra norte-americano Howard Cutler revela um clima monástico de serenidade, estabilidade e beleza espiritual." ... o cômodo era o mesmo de duas décadas atrás, quando eu começara a visitar o Dalai Lama: transmitia a mesma sensação de espaço, de tranquilidade, a mesma sensação de amplitude criada pelas janelas largas, um dos lados voltado para as montanhas cobertas de gelo e o outro voltado para o verdejante vale de Kangra, que descia a grandes profundezas. As iluminuras da deidade Tara, emolduradas em brocados de seda colorida penduradas nas paredes amarelo-pálidas; o mapa em relevo do Tibete, que cobria um das paredes do piso ao teto; e os altares budistas adornados com belas imagens, tigelas, lâmpadas ritualísticas - tudo continuava no lugar de sempre. Mesmo a cadeira estofada do Dalai Lama, e o sofá que combinava com ela, no qual eu estava sentado, ambos dispostos ao redor de uma mesinha de centro laqueada de vermelho-carmim, pareciam os mesmos." Cutler dividiu com o Dalai lama a autoria do livro A Arte da Felicidade em um Mundo Conturbado.
Práticas como a meditação e o distanciamento das emoções destrutivas (ódio, raiva, ciúmes, cobiça, inveja...) consolidaram, com o correr dos anos, força de um homem inabalável. Na última visita que fez ao Brasil, ele falou da importância de se opor, com firmeza, com quem não concordamos (como ele próprio se opõe à política externa da China), mas sem ódio, e com muita compaixão. Dalai Lama acredita na bondade humana inerente ao coração dos homens, e que ela sempre pode prevalecer numa disputa. "Ainda que um punhado de seres humanos seja capaz de cometer atos como os do World Trade Center, continuo acreditando que somos essencialmente bons, na medida em que nossa natureza é pacífica, não violenta", disse ele a Cutler e em inúmeros dos seus livros. Talvez por isso tenha se dedicado a falar tanto sobre as emoções destrutivas durante sua vida. Hoje, ele também as chama de emoções distrativas - pois elas nos desviam do momento presente, o único que pode nos trazer felicidade, e do contato com nossa natureza genuína.
Um líder pop
Outro detalhe revelador de sua vida: a sua completa abertura o mundo moderno. Isso é bem visível em filmes como Kundun e Sete Anos no Tibete. Lá está o jovem Tenzin interessado em saber o mecanismo do relógio, o funcionamento das lunetas, da janela que abre e fecha automaticamente no carro, ou em querer conhecer os mapas da Europa ou como se vive em outros países. Foi também ele que se interessou pela relação entre a meditação e a atividade do córtex cerebral, abrindo um imenso campo de pesquisas sobre os efeitos da prática meditativa no ser humano.
Poderíamos ficar horas por aqui falando das inúmeras qualidades do Dalai Lama. Porém, a que causa mais impacto, e que me deixou surpresa no momento em que o vi, é sua profunda humanidade. Estava diante de um homem, na verdadeira e mais sublime acepção da palavra. "Quando me relaciono com alguém, quer seja um presidente ou um importante empresário, quer seja uma pessoa comum, um mendigo ou um aidético, o que nos permite formar uma ligação imediata é nossa humanidade comum", disse o Dalai Lama. "É por isso que me permite sentir uma profunda ligação com os outros. Esse é o segredo."
Em seu jeito sincero e humilde, ele nos diz que somos iguais. Trata as pessoas com carinho, respeito e dignidade brinca com os jornalistas, inclina-se generoso para quem pede ajuda, sorri para quem tem lágrimas nos olhos. No budismo chinês, diz-se que o nome da deidade da compaixão, Kuan Yin, quer dizer "aquele que ouve os lamentos do mundo". Como emanação de um Buda compassivo, Tenzin Gyatso parece estar no mundo para ouvir seus lamentos e confortar os corações.
"Sou apenas um monge", diz Tenzin Gyatso em muitas entrevistas e palestras. A descrição do seu quarto feita pelo psiquiatra norte-americano Howard Cutler revela um clima monástico de serenidade, estabilidade e beleza espiritual." ... o cômodo era o mesmo de duas décadas atrás, quando eu começara a visitar o Dalai Lama: transmitia a mesma sensação de espaço, de tranquilidade, a mesma sensação de amplitude criada pelas janelas largas, um dos lados voltado para as montanhas cobertas de gelo e o outro voltado para o verdejante vale de Kangra, que descia a grandes profundezas. As iluminuras da deidade Tara, emolduradas em brocados de seda colorida penduradas nas paredes amarelo-pálidas; o mapa em relevo do Tibete, que cobria um das paredes do piso ao teto; e os altares budistas adornados com belas imagens, tigelas, lâmpadas ritualísticas - tudo continuava no lugar de sempre. Mesmo a cadeira estofada do Dalai Lama, e o sofá que combinava com ela, no qual eu estava sentado, ambos dispostos ao redor de uma mesinha de centro laqueada de vermelho-carmim, pareciam os mesmos." Cutler dividiu com o Dalai lama a autoria do livro A Arte da Felicidade em um Mundo Conturbado.
Práticas como a meditação e o distanciamento das emoções destrutivas (ódio, raiva, ciúmes, cobiça, inveja...) consolidaram, com o correr dos anos, força de um homem inabalável. Na última visita que fez ao Brasil, ele falou da importância de se opor, com firmeza, com quem não concordamos (como ele próprio se opõe à política externa da China), mas sem ódio, e com muita compaixão. Dalai Lama acredita na bondade humana inerente ao coração dos homens, e que ela sempre pode prevalecer numa disputa. "Ainda que um punhado de seres humanos seja capaz de cometer atos como os do World Trade Center, continuo acreditando que somos essencialmente bons, na medida em que nossa natureza é pacífica, não violenta", disse ele a Cutler e em inúmeros dos seus livros. Talvez por isso tenha se dedicado a falar tanto sobre as emoções destrutivas durante sua vida. Hoje, ele também as chama de emoções distrativas - pois elas nos desviam do momento presente, o único que pode nos trazer felicidade, e do contato com nossa natureza genuína.
Um líder pop
Outro detalhe revelador de sua vida: a sua completa abertura o mundo moderno. Isso é bem visível em filmes como Kundun e Sete Anos no Tibete. Lá está o jovem Tenzin interessado em saber o mecanismo do relógio, o funcionamento das lunetas, da janela que abre e fecha automaticamente no carro, ou em querer conhecer os mapas da Europa ou como se vive em outros países. Foi também ele que se interessou pela relação entre a meditação e a atividade do córtex cerebral, abrindo um imenso campo de pesquisas sobre os efeitos da prática meditativa no ser humano.
Poderíamos ficar horas por aqui falando das inúmeras qualidades do Dalai Lama. Porém, a que causa mais impacto, e que me deixou surpresa no momento em que o vi, é sua profunda humanidade. Estava diante de um homem, na verdadeira e mais sublime acepção da palavra. "Quando me relaciono com alguém, quer seja um presidente ou um importante empresário, quer seja uma pessoa comum, um mendigo ou um aidético, o que nos permite formar uma ligação imediata é nossa humanidade comum", disse o Dalai Lama. "É por isso que me permite sentir uma profunda ligação com os outros. Esse é o segredo."
Em seu jeito sincero e humilde, ele nos diz que somos iguais. Trata as pessoas com carinho, respeito e dignidade brinca com os jornalistas, inclina-se generoso para quem pede ajuda, sorri para quem tem lágrimas nos olhos. No budismo chinês, diz-se que o nome da deidade da compaixão, Kuan Yin, quer dizer "aquele que ouve os lamentos do mundo". Como emanação de um Buda compassivo, Tenzin Gyatso parece estar no mundo para ouvir seus lamentos e confortar os corações.
(texto publicado na revista Vida Simples nº 114 - janeiro de 2012)
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