domingo, 29 de dezembro de 2013

Qual o filme da sua vida? - André Gravatá


Qualquer história (a de um amigo, a da sua tia, a sua, por que não?) dá um belo longa-metragem. Tudo depende da maneira como olhamos para nossa rotina. E ao fazer esse exercício a vida pode ganhar outro significado... Mais alegre, mais generoso. Experimente!

Uma parte da família da jornalista Eliane Brum mora na zona rural. Quando criança, ela passava os fins de semana por lá. A pequena Eliane brincava o dia inteiro de ser escutadeira e olhadeira: ela se sentava num banquinho e ouvia as histórias dos adultos por horas e horas, sem se cansar. Infiltrava seus ouvidos nas conversas e varria os olhares alheios com suas pestanas. Ela amava - e ainda ama - se deixar preencher pelo extraordinário que habita as pessoas. Que habita gente como você. Sim, não só a vida das pessoas ao seu redor, mas também a sua vale uma espiada atenta. Do momento em que você nasceu até hoje, passou-se uma trama complexa, cheia de idas e vindas. A amálgama das suas diferentes lembranças é um tesouro, um argumento para um filme nunca feito, de múltiplos enredos. Uma narrativa única, articulada com os registros que resistiram ao esquecimento.

Observar a vida com um olhar generoso é perceber a singularidade da própria história. É exercitar um olhar insubordinado, ressignificar o que usualmente é tachado de banal. "Nada é mais transformador que nos percebermos extraordinários - e não ordinários como toda a miopia do mundo nos leva a crer", afirma Eliane Brum em seu livro A Vida que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial). A partir do momento em que desconfiamos da banalidade, começamos a perceber que a vida real é tão interessante quanto a ficção.


Casamento entre realidade e ficção

Toda história tem conteúdo suficiente para trilogias de horas e horas. E a vida dilui as fronteiras entre comédia e tragédia, terror e animação. No cotidiano, o gêneros se mesclam, se intercalam, não há pausas. Se hoje seu dia se pareceu com um dos dramas psicológicos do diretor de cinema Lars von Trier, sempre impregnados de melancolia, quem sabe os acontecimentos de amanhã serão engraçados e absurdos como as comédias do ator e diretor Woody Allen. Se uma vida inteira fosse filmada, ela se pareceria com esses filmes de vanguarda, cheios de fragmentos, ora com cortes abruptos, ora com panorâmicas delicadas.

A vida de todas as pessoas é uma narrativa. Existimos na narrativa, como histórias inventadas, contadas e recontadas. "Realidade e ficção não se opõem. As ficções não param de fecundar a realidade e a realidade não deixa nunca de ser uma ficção em construção", disse a um jornal o argeliano Grégoire Bouillier, que vive e trabalha em Paris, autor de livros como Rapport sur Moi (sem tradução para o português), no qual narra todas as suas experiências até os 40 anos. A realidade se assemelha muito à ficção. Para nós, não há acontecimentos puros, apenas a interpretação e reinvenção dos fatos. "A chamada realidade é uma construção subjetiva", explica Paulo Albertini, professor do Instituto de Psicologia da USP. O fim de um namoro, por exemplo, é o fim do mundo para uns e a liberdade para outros.

O modo como percebemos nossa ficção - e a dos outros - vai sendo sutilmente construído ao longo dos anos, nas entrelinhas das vivências, no implícito das relações. Quando nos noticiários dizem que as pessoas (supostamente) comuns não são notícia, que só quando o dono morde o cão - e não quando o cão morde o dono - é que há uma manchete, de certa forma eles endossam a ideia de que a história da maioria das pessoas não é interessante o suficiente para ser contada. Quando algum amigo começa a contar sua história numa mesa de bar e nem todos dão a atenção devida, também se alimenta a banalização dos filmes alheios. E aí o interesse de muitos migra para heróis mirabolantes e celebridades com existências transtornadas, de quem não se conhece nem o básico, apenas a capa. Quando o limite das aparências superficiais é ultrapassado, as histórias vêm à tona e o extraordinário salta aos olhos. Isso vale tanto para famosos quanto para anônimos.


Acontecimentos únicos

Todas as histórias de vida são igualmente importantes no Museu da Pessoa. A instituição nasceu em 1991, com o objetivo de preservar memórias. A técnica usada: rebobinamento de lembranças. Dois dias por semana, pesquisadores se postam em frente a diversos personagens (gente como a gente) e os escutam por horas seguidas. O acervo é monumental, já foram recolhidos mais de 14 mil depoimentos e 72 mil fotos e documentos. O arquivo está quase integralmente disponível no site do projeto: há videos, áudios e transcrições das entrevistas, narrativas dos mais variados cantos do Brasil.

Há histórias como a da professora Benedita Pereira, que, quando perguntou para a mãe de onde ela veio, ouviu o seguinte: "Uma chuva forte caiu, a enxurrada veio, e eu peguei você". "Cada chuva que tinha, eu via minha vida começando ali, na enxurrada", comentou Benedita. Francisco Edmísio, outro dos entrevistados, levou um morador de rua para viver em sua casa. Depois levou outro, e outro, até que abrigou dezenas de pessoas. Homem simples, história fabulosa. Qualquer um pode agendar uma visita ou uma entrevista no espaço físico do museu, localizado em São Paulo. Além das entrevistas realizadas na sede da instituição, o Museu da Pessoa também desenvolve outros projetos, por meio dos quais a instituição vai até as histórias. Mais de 40 livros foram publicados, com depoimentos diversos, memórias de homens e mulheres ligadas ao comércio no Rio de Janeiro, depoimentos sobre profissões em extinção, de funcionários de empresas, crianças, escritores, professores, entre outros.

A fundadora do museu, Karen Worcman, desde pequena sentava na areia das praias do Rio de Janeiro á espreita de histórias, ao lado de desconhecidos. A ideia do Museu da Pessoa nasceu mais tarde, enquanto ainda estava na universidade, desenvolvendo um projeto sobre a imigração de judeus na capital carioca. Karen se encantou pelos 90 depoimentos que ouviu durante a pesquisa, de homens e mulheres que passaram pelos campos de concentração e ainda traziam consigo memórias muitíssimo vivas. "Fiquei fascinada com o jeito particular de cada um ver o mundo", diz.

Perceber que tanto sua rotina quanto a do outro rendem uma ótima narrativa implica o entendimento de que nenhuma vida merece menos atenção. Reconhecer o especial em você, não de maneira egocentrista, mas generosa, instiga um interesse pela riqueza de detalhes de todos os filmes anônimos que andam por aí, em cartaz o tempo inteiro. Quando começou a escrever uma coluna com histórias de desconhecidos no Zero Hora, o maior jornal do Rio Grande do Sul, no fim da década de 1990, a jornalista Eliane Brum, citada no comecinho desse texto, tentou desafiar o problema de vista que as camadas de rotina e frustrações nos geram. Na coluna foram retratadas histórias como a do carregador de malas que sonhava em andar de avião e a dos senhores num asilo que viviam lado a lado mas não sabiam nem mesmo o nome uns dos outros.

Tais relatos fantásticos, à la Luís Buñuel (cineasta espanhol, que morou no México), estão por toda parte. Inclusive em Eliane. Sua serenidade nem denuncia a epopeia que ela viveu. Aos 15 anos, a jovem porto-alegrense engravidou. Quando teve a filha, tomou uma decisão que mudou sua história radicalmente: fugiu de casa, sem o bebê, que ficou aos cuidados dos pais, e foi estudar. Um ato de insanidade lúcida. Hoje Eliane é uma jornalista premiada e tem uma boa relação com a filha. Tantos percalços e escolhas decisivas nas narrativas pessoais ilustram outro dos motivos que fazem as vidas valerem filmes: a trajetória de cada indivíduo se assemelha às jornadas dos heróis mitológicos.


O valor da jornada

O mitológico Joseph Campbell encontrou vários pontos em comum entre mitos e contos folclóricos de diferentes culturas. A trajetória do herói se repete de maneira bastante similar em histórias de povos totalmente diferentes. Invariavelmente, a aventura do herói começa com um chamado ao desconhecido. Passa por uma fase problemática, na qual ele é engolido por uma situação difícil, vai parar no fundo do poço, no ventre da baleia. Após momentos de tensão, vem o renascimento. E então há o retorno. O herói volta para o lugar de onde saiu, mas volta diferente, ele não é mais o mesmo. Muitas das fases da típica jornada do herói são identificáveis na trajetória humana, inclusive na sua.

A principal semelhança entre o herói mitológico e o terreno está no fato de que ambos vivem um processo de morte e renascimento, uma morte metafórica, que muda a maneira como vemos o que está ao redor. Falo aqui da faceta não idealizada dos heróis, daquela que não anula medos e dificuldades. Por isso, também é heroico ser poeta e ao mesmo tempo morador de rua, por exemplo. Andando por São Paulo com uma amiga, encontrei o poeta Raimundo. Vive descalço, sujo, mora num pedaço de terra entre ruas com mansões. Raimundo considera que a química, a eletrônica e a psiquiatria são o futuro do mundo, afirma isso com a certeza de um acadêmico. Não aceita falar sobre o passado e data seus poemas de uma maneira nada usual. O poema que ganhei de presente, sobre aeroportos, foi escrito no dia 2/08/1999+13. Ao falar, ele não olhava no meu olho. Sempre atento ao papel, continuava escrevendo suas letras duras.

Assim como muitos personagens mitológicos, Raimundo foi parar no ventre da baleia. Compará-lo com um herói não é alçá-lo a um púlpito só por sua situação difícil, mas reconhecer o valor da sua história - e até os heróis mais badalados, como Homem-Aranha e Super-Homem, só têm graça devido às suas biografias demasiado humanas, cheias de altos e baixos, amores e desamores. E depois do reconhecimento do valor das histórias, há um passo ainda mais importante.


A vida como obra de arte

No filme Sinédoque, Nova York, dirigido pelo norte-americano Charlie Kaufman, um diretor de teatro ganha um prêmio milionário para desenvolver um trabalho artístico. O personagem principal, Caden Cotard, começa uma obra ousada: monta a peça de teatro da sua vida, recria seu mundo em detalhes, com dezenas de atores trabalhando exaustivamente na representação de cada um dos momentos do seu cotidiano. Não há figurantes nessa peça, porque o cotidiano dos amigos de Caden também é encenado. Tenta-se criar a cópia fiel da vida, de várias vidas. No decorrer do filme, e da peça, os personagens vão assumindo seus papéis com mais autenticidade. Sinédoque, afinal conta a história de pessoas em busca da autoria de suas vidas.

"A vida deve ser pensada, querida e desejada tal como um artista deseja e cria sua obra, ao empregar toda a sua energia para produzir um objeto único", explica a professora Rosa Dias, no livro Nietzsche, Vida como Obra de Arte (Civilização Brasileira). A autoria de si mesmo é algo impossível de conquistar por completo, apenas parcialmente, aos poucos, numa busca que demanda coragem e curiosidade. Enquanto andava por Nova York à procura de anônimos, na década de 60, o jornalista Gay Talese encontrou uma dessas pessoas que provam como é possível uma vida mais autoral. Um dos bilheteiros do metrô da cidade mais populosa dos EUA é uma dessas figuras que transformam o drama da vida em animação.

Na frente da sua cabine, o bilheteiro pregou a seguinte mensagem: "Por favor, sorria. Este trabalho já é duro demais". Com um simples cartaz, ele fazia as pessoas mudarem de humor. Também dava bom dia para todos e até emprestava bilhetes para quem esquecia o dinheiro. Mais que reconhecer que a vida vale um filme, o bilheteiro de Nova York considerou que o filme de sua existência também merecia uma edição bem feita - e generosa. Se essa história fosse para o cinema, muitos duvidariam de que ela é real. Se a sua história fosse para o cinema, provavelmente isso também aconteceria. De perto, o comum é incomum, novo. Então que tal pegar um banquinho e dar uma de escutador, de escutadeira, de olhador, de olhadeira? De escutador do seu filme, e também do dos outros. A vida lhe parecerá bem mais interessante. Cheia de ação! Com tantos longa-metragens ambulantes no cotidiano e no espelho, é até capaz que você diminua suas idas ao cinema.



(texto publicado na revista Vida Simples nº 114 - Janeiro de 2012)

























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