Não basta ser honesto ou respeitar o próximo. É preciso saber por que ser e agir assim.
Parar o carro no sinal vermelho, não jogar lixo na rua, respeitar o próximo... Em sua opinião, cara leitora, esses princípios que permeiam o nosso cotidiano são bons porque devem ser obedecidos ou devem ser obedecidos porque são bons? Esse é um dos pontos-chave que norteiam um conceito imprescindível para que possamos conviver harmonicamente em sociedade: a autonomia.
Quando crianças, a única alternativa que nos resta é seguir sem reclamar as regras impostas frequentemente pelos adultos. "Não belisque seu amiguinho!", "É feio falar palavrão", "Você não pode pegar os brinquedos que não são seus" e "Ganhou um presente? Diga obrigada!" são algumas das muitas ordens que recebemos todo o tempo. Não temos opção: só nos resta acatá-las ou levar uma bronca. Mas, para que realmente se tornem significativas e sejam incorporadas por toda a vida - inclusive quando os tais adultos não estiverem presentes - essas solicitações devem ser explicadas e sustentadas por quem as fala para que deixem de ser meras imposições. Afinal, por que não beliscar o outro se ele me beliscou? Não dizer palavrão se os adultos dizem? Não pegar o brinquedo que quero? E para que agradecer alguém por ter me agraciado com uma lembrança? Porque sim definitivamente não é a resposta: é necessário argumentar, pondo em evidência os valores e os princípios que estão por trás desses comportamentos. É uma tarefa bem mais simples do que parece à primeira vista. "Dizer que não se deve agredir alguém fisicamente porque todos merecem respeito é um desses argumentos", diz Ana Aragão, psicóloga e professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
"Ao ser colocado em contato com explicações claras que ressaltam o respeito ao próximo, o ser humano tem, desde cedo, a chance de julgar com base em princípios e liberar-se da obediência estrita às regras impostas pelos outros, passando assim da situação de heteronomia para a de autonomia", fala Maria Teresa Trevisol, professora da graduação da Área de Ciências Humanas e Sociais do Programa de Mestrado em Educação da Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc). Esses são os termos centrais na filosofia moral do alemão Immanuel Kant (1724-1804), autor da citação "Age de tal modo que a máxima da tua ação se possa tornar princípio de uma legislação universal".
Trilhando o próprio caminho
É claro que regras são importantes para o relacionamento social. Imagine grandes avenidas sem sinalização, por exemplo. Mas as normas não devem ser seguidas e respeitadas por temor às punições que o desrespeito a elas implica. Com limites mecânicos, é muito provável que alguém não se sinta atemorizado o suficiente com o castigo ou até se veja livre para cometer a mesma falta outra vez - afinal, basta "pagar" a pena e seguir a vida. Com pensamento autônomo bem fundamentado, agir pensando no outro e se manifestar para reparar o erro tende a ser uma atitude espontânea.
Lembra-se do escândalo de Watergate, na década de 70, que levou à renúncia de Richard Nixon (1913-1994) nos EUA? A postura de um dos funcionários do gabinete presidencial é excelente exemplo de autonomia, a ponto de ser citado pela educadora suíça Constance Kamii, em seu livro A Criança e o Número (Papirus), ao abordar a importância da autonomia para a aprendizagem escolar. Voltando no tempo, recordemos a decisão de Elliot Richardson, o tal funcionário de Nixon. Contrariando seu chefe, ele renunciou ao cargo porque não admitir ter de mentir a respeito do que estava acontecendo na política americana, mesmo sabendo que seus colegas não fariam o mesmo. Ana Aragão analisa que essa foi uma postura de quem compara o valor moral de ser justo e honesto com a questão da sobrevivência, que implica se manter no emprego a qualquer preço. "Para tomar a decisão, o autônomo não pensa só em si mesmo, como os heterônomos. Leva em conta o coletivo, analisa e assume as consequências que sua postura implica", diz ela.
No cotidiano, a postura autônoma também se revela importante a todo o momento. "No casamento, por exemplo, é preciso considerar o ponto de vista do parceiro, abdicar interesses individuais e cooperar para a manutenção da relação e da família. Os heterônomos não conseguem agir dessa maneira, a menos que alguém esteja sempre a guiá-los", conclui Maria Teresa. Eles também costumam ser movidos por recompensas. Fazem isto ou aquilo porque é bonito e elogioso. Assim, deixam escapar uma da maiores e mais ricas aprendizagens da vida: o crescimento por meio das relações de troca e o convívio em harmonia com seus semelhantes.
(texto publicado na revista Bons Fluídos nº 126 - setembro de 2009)
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