Muito mais que divertidas aventuras, Asterix, Obelix e companhia representam, com sua heróica resistência aos romanos, uma metáfora histórica e social do povo francês
Os quadrinhos com as histórias de Asterix: o Gaulês, assinados pela dupla Albert Uderzo (arte) e René Goscinny (texto) são fenômeno de público desde a década de 60. Pelo menos 30 dos 33 álbuns estão traduzidos em mais de cem idiomas. Os dois filmes lançados em 1999 e em 2002 (com o conhecido ator Gérard Depardieu no papel de Obelix) arrecadaram milhões de dólares no mundo todo. Além deles, a série contou com oito animações em longa-metragem, como o recente Asterix e o Vikings (de Stefan Fjeldmark e Jesper Moller, 2006), que também obteve enorme sucesso.
A que se deve esse fascínio? Sem dúvida, a maior parte, ao talento cômico de seus criadores. Mas a insubordinação de Asterix, Obelix e os demais personagens da aldeia gaulesa ao poderoso império romano dão prazer especial aos leitores.
Obelix e Asterix
Apesar de as aventuras de Asterix se passarem em um tempo antigo, um pouco depois da conquista da Gália por César, muitas das situações cômicas são inspiradas por questões contemporâneas que não fariam sentido algum na Gália ou na Roma do século 1º a. C. ao 1º d. C. Muitas vezes os acontecimentos não têm nada a ver com a História e são usados como meros recursos literários. Há até muitos erros históricos. Por exemplo, o fato de César ser chamado de imperador, quando no período da conquista gálica ele ainda era um cônsul. Para poder localizar bem essas "licenças poéticas" é necessário compreender como era realmente a sociedade gaulesa nessa época. Desse modo, as inserções contemporâneas na História ficam mais claras e dão sabor ainda maior aos quadrinhos de Uderzo e Goscinny.
Toda a Gália foi ocupada
Grupo étnico cujo nome foi dado pelos gregos, os celtas estavam presentes em uma boa parte da Europa ao redor do ano 500 a. C. Esse território correspondia à atual França, o norte da Itália, a Áustria, a Espanha e Portugal. O nome galli, que originou o termo "gauleses", é romano e foi usado como designação geral para as populações da Gália (França). Com a conquista romana, o território ocupado por essas comunidades foi dividido em três Gálias: a Alpina, a Cisalpina e a Transalpina. Esses territórios correspondiam quase exatamente aos limites do atual território francês.
A trama de Asterix se passa na Gália, pouco tempo depois de César completar a conquista dessas populações. Naquela época, César era procônsul, responsável pela administração da Gália Transalpina. Depois da conquista, ele escreveu a obra de Bello Gallico, até hoje considerada uma das principais fontes escritas a respeito da guerra gálica, que durou de 58 a 51 a. C. César ganhou o título de principes depois da guerra civil e, como reação ao aumento cada vez maior do seu poder, um grupo de conspiradores o assassinou em 44 a. C., entre os quais, seu filho adotivo, Brutus.
Apesar de eventuais revoltas, a conquista da Gália foi considerada uma empreitada bem-sucedida. Ao contrário do que apresentam os quadrinhos, não se sabe de nenhuma tribo que tenha escapado da influência romana no período posterior à conquista. Muitos autores consideram que essa vitória tenha se dado também devido à estrutura de organização gaulesa, dividida em "tribos" independentes, que mantinham traços culturais comuns mas viviam em constante rivalidade.
Dessa maneira, César obteve o apoio de algumas comunidades na luta contra outras. Houve tentativas de resistência, a mais importante foi liderada por Vercingetórix, chefe da tribo averna. Essa, como as demais, fracassou. Mas o nome de seu líder ganharia projeções históricas futuras.
Toda? Não!
Como Asterix na ficção, Vercingetórix é considerado o principal herói histórico da Gália. Esse reconhecimento se deu no período em que a Antiguidade gaulesa foi revisitada. Depois da Revolução Francesa, na época de Napoleão III, houve a atribuição de uma visão positiva ao chamado Terceiro Estado - os sans culottes e os camponeses que haviam exercido papel fundamental na destituição da nobreza e na criação do processo revolucionário. Essa valorização do Terceiro Estado teve como consequência uma perspectiva semelhante com relação aos gauleses. Afinal, segundo estudiosos da época, os reis eram descendentes dos francos, e o Terceiro Estado, dos galo-romanos. Ou seja, quem realmente ganhou importância foi a população gaulesa conquistada, que adotou os padrões culturais romanos.
Os gauleses foram vistos favoravelmente no esteio desse processo de recuperação histórica. Tanto, que Vercingetórix é um herói vencido, mas lembrado por sua coragem, bravura e sacrifício, e principalmente por ter aberto caminho, com sua derrota, para a integração da Gália à cultura clássica e ao nascimento da "civilização galo-romana". Apoiando-se em uma população que teria dado origem ao povo, e não à monarquia, procurava-se fortalecer a ideia de nação e reforçar o republicanismo.
A figura de Vercingetórix foi constantemente reinterpretada ao longo da História. Entretanto, um estereótipo que se tornou constante é a do "herói resistente", característica também presente em Asterix. Dessa forma, o personagem deve a Vercingetórix não apenas essa imagem, mas também a própria visão positiva do gaulês, nem constante, nem óbvia na História.
Uma aldeia resiste ao invasor
Assim como em Vercingetórix, as aventuras de Asterix e de seu fiel companheiro Obelix são produto de um momento histórico e de uma construção condizente com ele. Apesar de não terem tido só essa finalidade, os autores produziram (e produzem) textos com traços políticos, sociais e culturais nos quais estavam imersos. Isso os obrigava a escrever de acordo com a mentalidade da época.
No período em que Asterix começou a ser escrito tinha-se, por um lado, a forte lembrança da ocupação nazista na França e do colaboracionismo com os alemães durante a Segunda Guerra Mundial. Por outro, a intensa influência estadunidense era sentida como ameaça.
Em resposta, temos a personificação da ideia de que a França não se curva, por meio da representação de Asterix como um herói resistente, diante do qual César não consegue alcançar totalmente seu objetivo. E o herói, além de tudo, brinca com a identidade romana. Em Asterix nos Jogos Olímpicos, por exemplo, só os gregos - criadores da competição - e os romanos podem participar dessa celebração desportiva. Mas Asterix argumenta que, se a Gália foi conquistada por Roma, isso faz dele romano, mesmo que sua tribo não aceite ser subjugada.
As décadas seguintes ao fim da Segunda Guerra Mundial foram marcadas pela perda de duas colônias francesas: a Indochina (Vietnã) e a Algéria (Argélia). E os quadrinhos de Asterix não estavam necessariamente apoiando essa separação. A obra representa ideais e concepções de mundo francesas. Nesse sentido também é possível vislumbrar o personagem como uma resposta à situação: a França teria resistido à colonização, ao contrário das colônias francesas que tinham se deixado conquistar.
Embora seja possível extrair elementos políticos da conjuntura da época, a principal função dos quadrinhos de Asterix é fazer rir. Os autores atribuem aos personagens em suas histórias os defeitos e as qualidades que também caracterizariam os franceses, fazendo projeções do presente histórico num passado ficcional. Assim, não são de estranhar as alusões a carros, à televisão, à ecologia, entre outras.
A análise dos quadrinhos de Asterix é um exemplo da importância de conhecer os vários períodos históricos apesar da sua dissociação em sala de aula. Afinal de contas, em uma obra contemporânea, todos os momentos históricos aqui discutidos - a Antiguidade, Revolução Francesa, guerras napoleônicas e o pós-guerra no século 20 - são parte essencial para entender o humor da obra de Uderzo e Goscinny.
Toda a Gália foi ocupada
Grupo étnico cujo nome foi dado pelos gregos, os celtas estavam presentes em uma boa parte da Europa ao redor do ano 500 a. C. Esse território correspondia à atual França, o norte da Itália, a Áustria, a Espanha e Portugal. O nome galli, que originou o termo "gauleses", é romano e foi usado como designação geral para as populações da Gália (França). Com a conquista romana, o território ocupado por essas comunidades foi dividido em três Gálias: a Alpina, a Cisalpina e a Transalpina. Esses territórios correspondiam quase exatamente aos limites do atual território francês.
A trama de Asterix se passa na Gália, pouco tempo depois de César completar a conquista dessas populações. Naquela época, César era procônsul, responsável pela administração da Gália Transalpina. Depois da conquista, ele escreveu a obra de Bello Gallico, até hoje considerada uma das principais fontes escritas a respeito da guerra gálica, que durou de 58 a 51 a. C. César ganhou o título de principes depois da guerra civil e, como reação ao aumento cada vez maior do seu poder, um grupo de conspiradores o assassinou em 44 a. C., entre os quais, seu filho adotivo, Brutus.
Apesar de eventuais revoltas, a conquista da Gália foi considerada uma empreitada bem-sucedida. Ao contrário do que apresentam os quadrinhos, não se sabe de nenhuma tribo que tenha escapado da influência romana no período posterior à conquista. Muitos autores consideram que essa vitória tenha se dado também devido à estrutura de organização gaulesa, dividida em "tribos" independentes, que mantinham traços culturais comuns mas viviam em constante rivalidade.
Dessa maneira, César obteve o apoio de algumas comunidades na luta contra outras. Houve tentativas de resistência, a mais importante foi liderada por Vercingetórix, chefe da tribo averna. Essa, como as demais, fracassou. Mas o nome de seu líder ganharia projeções históricas futuras.
Toda? Não!
Como Asterix na ficção, Vercingetórix é considerado o principal herói histórico da Gália. Esse reconhecimento se deu no período em que a Antiguidade gaulesa foi revisitada. Depois da Revolução Francesa, na época de Napoleão III, houve a atribuição de uma visão positiva ao chamado Terceiro Estado - os sans culottes e os camponeses que haviam exercido papel fundamental na destituição da nobreza e na criação do processo revolucionário. Essa valorização do Terceiro Estado teve como consequência uma perspectiva semelhante com relação aos gauleses. Afinal, segundo estudiosos da época, os reis eram descendentes dos francos, e o Terceiro Estado, dos galo-romanos. Ou seja, quem realmente ganhou importância foi a população gaulesa conquistada, que adotou os padrões culturais romanos.
Os gauleses foram vistos favoravelmente no esteio desse processo de recuperação histórica. Tanto, que Vercingetórix é um herói vencido, mas lembrado por sua coragem, bravura e sacrifício, e principalmente por ter aberto caminho, com sua derrota, para a integração da Gália à cultura clássica e ao nascimento da "civilização galo-romana". Apoiando-se em uma população que teria dado origem ao povo, e não à monarquia, procurava-se fortalecer a ideia de nação e reforçar o republicanismo.
A figura de Vercingetórix foi constantemente reinterpretada ao longo da História. Entretanto, um estereótipo que se tornou constante é a do "herói resistente", característica também presente em Asterix. Dessa forma, o personagem deve a Vercingetórix não apenas essa imagem, mas também a própria visão positiva do gaulês, nem constante, nem óbvia na História.
Asterix, Ideiafix e Obelix
Uma aldeia resiste ao invasor
Assim como em Vercingetórix, as aventuras de Asterix e de seu fiel companheiro Obelix são produto de um momento histórico e de uma construção condizente com ele. Apesar de não terem tido só essa finalidade, os autores produziram (e produzem) textos com traços políticos, sociais e culturais nos quais estavam imersos. Isso os obrigava a escrever de acordo com a mentalidade da época.
No período em que Asterix começou a ser escrito tinha-se, por um lado, a forte lembrança da ocupação nazista na França e do colaboracionismo com os alemães durante a Segunda Guerra Mundial. Por outro, a intensa influência estadunidense era sentida como ameaça.
Em resposta, temos a personificação da ideia de que a França não se curva, por meio da representação de Asterix como um herói resistente, diante do qual César não consegue alcançar totalmente seu objetivo. E o herói, além de tudo, brinca com a identidade romana. Em Asterix nos Jogos Olímpicos, por exemplo, só os gregos - criadores da competição - e os romanos podem participar dessa celebração desportiva. Mas Asterix argumenta que, se a Gália foi conquistada por Roma, isso faz dele romano, mesmo que sua tribo não aceite ser subjugada.
As décadas seguintes ao fim da Segunda Guerra Mundial foram marcadas pela perda de duas colônias francesas: a Indochina (Vietnã) e a Algéria (Argélia). E os quadrinhos de Asterix não estavam necessariamente apoiando essa separação. A obra representa ideais e concepções de mundo francesas. Nesse sentido também é possível vislumbrar o personagem como uma resposta à situação: a França teria resistido à colonização, ao contrário das colônias francesas que tinham se deixado conquistar.
Embora seja possível extrair elementos políticos da conjuntura da época, a principal função dos quadrinhos de Asterix é fazer rir. Os autores atribuem aos personagens em suas histórias os defeitos e as qualidades que também caracterizariam os franceses, fazendo projeções do presente histórico num passado ficcional. Assim, não são de estranhar as alusões a carros, à televisão, à ecologia, entre outras.
A análise dos quadrinhos de Asterix é um exemplo da importância de conhecer os vários períodos históricos apesar da sua dissociação em sala de aula. Afinal de contas, em uma obra contemporânea, todos os momentos históricos aqui discutidos - a Antiguidade, Revolução Francesa, guerras napoleônicas e o pós-guerra no século 20 - são parte essencial para entender o humor da obra de Uderzo e Goscinny.
O druida Panoramix
(texto publicado na revista Desvendando a História nº 14 ano 3)
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