A coleção Vaga-Lume, que formou gerações de leitores nos anos 70 e 80, é reeditada para disputar o mercado jovem
Corria o ano de 1972, quando as escolas brasileiras exigiam que a garotada fizesse fichas de leitura de clássicos românticos como A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo. A Editora Ática realizou então uma sondagem em salas de aula de São Paulo, Minas Gerais e Paraná. Queria ver como seria a recepção de quatro títulos novos destinados a estudantes de 10 a 16 anos. Escrito por Maria José Dupré (1898-1984). A Ilha Perdida era uma dessas obras. Trazia uma trama de mistério, sobre dois adolescentes do interior paulista que visitam, de canoa, uma ilha deserta cercada de lendas. Antes de se lançar à aventura, eles abasteciam a lancheira, prosaico detalhe que correspondia à realidade imediata dos leitores. "A gente queria saber se os alunos liam depressa, se comentavam com os amigos", lembra o editor Jiro Takahashi, um dos idealizadores da coleção Vaga-Lume. E, sim, os jovens identificaram-se com esses heróis de sua idade, com dilemas e linguajar próximos dos seus. Nas décadas de 70 e 80, a Vaga-Lume converteu-se em uma potência, com 7,5 milhões de exemplares vendidos de 74 títulos. Só A Ilha Perdida, o maior sucesso, vendeu 3,5 milhões. E não foi apenas um fenômeno de mercado: ao lado da contemporânea Para Gostar de Ler, que trazia coletâneas de contos e crônicas de autores como Fernando Sabino e Carlos Drummond de Andrade, a coleção formou leitores. Não veio tomar o lugar dos clássicos obrigatórios: serviu, isso sim, como uma porta de entrada para o jovem que em seguida leria seu Machado de Assis. "O adolescente é um narciso. Se a história fugir da realidade imediata dele, é muito difícil fisgá-lo", diz Regina Zilberman, professora do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e especialista em história da leitura.
Corre o ano de 2015, quando mais de 200 000 pessoas visitaram, na semana passada, a Bienal do Livro do Rio de Janeiro, grande evento expositor do mercado editorial brasileiro. A maioria dos frequentadores tinha entre 14 e 24 anos. Um painel foi montado para o público tirar selfies e a área de apresentações foi ampliada para os fãs aguardarem a chegada de seus ídolos - não musicais nem televisivos, mas literários. O segmento infanto-juvenil ainda se mantém à tona da crise: uma pesquisa encomendada pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros revela que, em 2014, foram produzidos 57,3 milhões de exemplares para o público infanto-juvenil, contra 48,4 milhões para a chamada literatura adulta. De olho nos novos leitores, a Ática fez uma merecida reedição - comemorativa dos cinquenta anos da editora - de dez títulos da Vaga-Lume e já promete uma nova leva de dez para o próximo ano. Ficaram de fora as obras de um dos mais bem-sucedidos autores da coleção, Marcos Rey (1925-1999) - mas apenas porque títulos como O Mistério do Cinco Estrelas (o segundo mais vendido da Vaga-Lume) hoje são publicados por outra editora, a Global. A despeito da renitente queixa sobre o desinteresse dos jovens pela leitura, o fato é que eles leem, sim. Nas décadas transcorridas desde o auge da Vaga-Lume, best-sellers internacionais como a série Harry Potter de J. K. Rowling, e A Culpa é das Estrelas, de John Green, tomaram seu lugar. "Essas leituras formam a identidade de leitor dessa rapaziada", diz Regina Zilberman. A identidade de escritoras brasileiras que hoje fazem sucesso entre a garotada foi formada pela Vaga-Lumes, como demonstram, nestas páginas, os depoimentos de Thalita Rebouças, Paula Pimenta e Isabela Freitas.
A coleção relançada, porém, disputará a volátil atenção adolescente com um novo subgênero: o livro nascido da rede social ou do canal no You Tube. A curitibana Kéfera Buchmann, do canal 5incominutos, recém-estreou no mundo do papel impresso e já vê seu Muito Mais que 5inco Minutos no topo da categoria não ficção da lista de VEJA. Christian Figueiredo, dos dois volumes de Eu Fico Loko, cujas vendas alcançaram 250 000 exemplares, diz nunca ter ouvido falar da Vaga-Lume. Na Bienal, esses dois autores viveram dias de celebridade, com filas de milhares de fãs escandalosos. "Eu não vim do You Tube. É por isso que meus fãs, em vez de gritar, leem livros na fila de autógrafos", desdenha Thalita Rebouças. A formação de um bom leitor raramente se faz pela acumulação linear de grandes obras: antes de chegar a Proust ou Cervantes, em geral se passa por algumas bobagens. Mas nem tudo que tem forma de livro conduz a uma longa e prazerosa convivência com os livros. Os leitores que no passado apreciaram O Mistério do Cinco Estrelas, ou O Escaravelho do Diabo, de Lúcia Machado de Almeida, hoje se lembram afetuosamente dessas obras. Talvez elas não tenham o mesmo apelo para os adolescentes de agora - mas não seria mau que eles, como tantos de gerações anteriores, encontrassem aí a porta para a literatura.
(texto publicado na revista Veja edição 2443 - ano 48 - nº 37 - 16 de setembro de 2015)
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