As inúmeras possibilidades de conexão digital representam uma estupenda conquista para a sociedade atual. Mas a ânsia de estar on-line com tudo e, pricnipalmente, com todos, o tempo inteiro, fez nascer um personagem: o cibersolitário
Você já viu esta cena. Agora mesmo ela pode estar ocorrendo ao seu lado. Um casal, dois adolescentes, talvez uma criança dividem uma mesa num restaurante. É razoável supor que a ideia de comer fora tenha surgido como um programa - com o perdão da redundância - familiar. E, no entanto, o que se vê é cada um entretido com seu smartphone, alheio aos vizinhos de cadeira, os dedos dos mais novos movimentando-se com destreza de pianista, os dos mais velhos sem tanta agilidade, é fato, e nem por isso menos ansiosos. Na tela do celular, um desfile infindável de fotos, videos, WhatsApp, Facebook, Twitter e Instagram. Ainda que os personagens e o ambiente sejam outros - namorados na fila de bilheteria do cinema, um grupo de amigos em um show, pais à espera dos filhos na saída da escola -, tal tipo de comportamento é cada vez mais frequente. Eles estão juntos, mas separados. Estão próximos, porém distantes. Estão acompanhados - mas sozinhos. São os cibersolitários.
Bem-vindos à Era Virtual. Essa seria a primeira e mais óbvia conclusão. Em tempos digitalmente corretos, qualquer pensamento contrário a esse soaria como um elogio à "magia", ao "romantismo", ao encantamento de - para usar um termo adequado - "outrora". Entretanto, não há nenhuma magia, romantismo nem encantamento no atraso. Seria absolutamente descabido demonizar os avanços tecnológicos, sobretudo com o advento da internet, e a revolução trazida por eles, em especial no quesito comunicação. Ao mesmo tempo, parece inegável haver um ponto a partir do qual as relações virtuais passam a andar na mão oposta à de suas principais conquistas - minando os relacionamentos pessoais "reais".
Diz a psicóloga e socióloga Sherry Turkle, professora do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), em seu livro Alone Together (Sozinhos Juntos): "A tecnologia é sedutora quando o que oferece preenche nossas vulnerabilidades humanas. E somos, realmente, bastante vulneráveis. Somos solitários, mas temos medo da intimidade. As conexões digitais oferecem a ilusão de estarmos acompanhados, contudo sem as demandas da amizade. Nossa vida virtual permite nos escondermos uns dos outros, mesmo quando estamos interessados. Preferimos teclar a falar". Certa vez, durante sua pesquisa de campo, ela ouviu de um rapaz de 18 anos: "Um dia gostaria de aprender a ter uma conversa de verdade".
Até pouco tempo atrás, Sherry Turkle era uma inconteste entusiasta do mundo digital. Durante seus estudos sobre o tema, porém, passou a identificar alguns incômodos exageros no mergulho no universo virtual. isso a levou a rever sua posição, sem deixar de reconhecer os benefícios de viver na Idade da Web. De acordo com a especialista, o argumento mais usado por aqueles que preferem se comunicar quase que exclusivamente por meio de ferramentas digitais é a possibilidade de controlar cada palavra da conversa e, dessa forma, eliminar qualquer perspectiva de ser surpreendido - para o bem e para o mal. No Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso do Hospital das Clínicas, em São Paulo, a psicóloga Dora Sampaio Góes, vice-coordenadora do Programa de Dependência Tecnológica, já atendeu até mesmo gente que havia perdido o elo com todos os amigos feitos pessoalmente e só conseguia cultivar os virtuais. "É claro que, nesses casos extremos, o indivíduo já tem pouca habilidade social. A internet não muda a índole de ninguém. O que vicia é a possibilidade de melhorar o conceito sobre si mesmo, e isso é justamente o que aumenta a solidão: o abismo entre a persona virtual e a real", acredita ela.
Uma pesquisa feita pelo Pew Research Center nos Estados Unidos com 2 000 usuários de smartphone, divulgada em abril, mostrou que nada menos do que 47% dos jovens adultos, na faixa entre 18 e 29 anos, usam o dispositivo para deliberadamente evitar as pessoas ao redor - ainda que, vez por outra, possa haver algum tipo de interação entre cibersolitários. A porcentagem diminui conforme a idade aumenta. No mesmo levantamento, enquanto 54% do total de entrevistados assume que o telefone nem sempre é necessário, 46% dizem que não podem mais viver sem ele. Embora o aparelho suscite mais emoções positivas do que negativas - 79% disseram sentir-se mais produtivos com ele, por exemplo -, 57% mencionaram "distração excessiva" e 36%, "frustração" ao utilizar o celular.
A mera presença de um smartphone - mudo, apagado - já é suficiente para interferir na qualidade da conversa entre duas pessoas. Foi o que revelou o estudo "The iPhone effect" (O efeito iPhone), realizado em 2014. Nele, pesquisadores da universidade Virginia Tech observaram 100 duplas que interagiam em um café por dez minutos. Aquelas que trocaram palavras sem a presença de um iPhone à mesa reportaram maior empatia e proximidade em relação ao interlocutor. O trabalho, feito com voluntários, comparou o contato estabelecido entre pessoas que se conheciam e desconhecidas entre si. Até os desconhecidos que conversaram sem o smartphone por perto relataram um grau maior de empatia do que os conhecidos que fizeram o mesmo na presença de um celular.
Recentemente, um restaurante de Nova York, que preferiu permanecer anônimo e definir-se apenas como "famoso e renomado", divulgou o resultado de um levantamento que comparou imagens de vídeo de seus clientes em 2004 e em 2014. A análise começou a ser feita quando o estabelecimento passou a receber reclamações de que seu serviço estava muito lento. As queixas continuaram mesmo após a contratação de mais funcionários e a redução de itens no menu. Pois bem: descobriu-se que a demora era culpa dos clientes que insistiam em se manter conectados. Enquanto as refeições duravam, em média, uma hora e cinco minutos no período pré-smartphone, elas se estenderam por uma hora e 55 minutos em 2014. Em 2004, nenhum cliente fotografou o próprio prato. Já em 2014, mais da metade registrou o que estava comendo, levando cerca de três minutos para concluir o processo. Não houve pedidos de clientes ao garçom para tirar uma foto da mesa em 2004. Dez anos depois, 27 a cada 45 clientes o fizeram, sendo que catorze pediram para refazer a foto.
"É inegável que as pessoas estão deixando as relações reais de lado", diz Christian Gebara, vice-presidente executivo de marketing e vendas da Telefônica Vivo. Em discussões dentro da própria empresa, Gebara e sua equipe comentavam sobre o desconforto ao ver alguém dirigindo e teclando ao mesmo tempo ou andando pela rua sem desgrudar o olhar da tela. Foi assim que surgiu a campanha #UsarBemPegaBem, que sugere, por exemplo, que os casais desconectem os aparelhos nos momentos a dois e que o celular não seja usado no trânsito, pois aumenta em 400% o risco de acidentes. "Não se trata de um debate contra a conexão, mas sobre seu uso consciente", argumenta Gebara.
Para o sociólogo e advogado Stefan Larsson, diretor do Instituto da Internet na Universidade de Lund, na Suécia, é normal que a sociedade leve tempo para se adaptar e definir bem as regras que vão orientar o novo comportamento tecnológico-conectivo. "A maneira como nos socializamos e nos comunicamos muda; no entanto, o que ocorre agora é mais uma alteração de formato, da voz para o texto", diz Larsson. "Tendemos a acreditar que a voz seja algo mais natural porque estamos acostumados a esse tipo de comunicação. Nosso desafio é encontrar um balanço entre a conexão das telas e o ambiente externo", complementa.
Há estudiosos menos otimistas, que creem que as sociedades conectadas estão gradualmente migrando do que chamam de relações verticais para relações horizontais. No modelo horizontal, os vínculos expandem-se vultosamente, porém são mais superficiais e não demandam o tempo, a dedicação, a atenção e o comprometimento das relações verticais, que progridem e exigem "sacrifícios" para ser cultivadas. As conversas virtuais são, em geral, breves e facilmente transmitidas. Raramente sustentam discussões complexas ou sentimentos mais profundos.
Segundo o psicanalista Renato Mezan, o comportamento cibersolitário é provocado pela ânsia de estabelecer contatos. "É uma espécie de voracidade pela comunicação, que é difícil de suportar por causa de nossas limitações. Não podemos fazer tudo ao mesmo tempo", raciocina ele. Essa "voracidade pela comunicação" espelha, sem dúvida, a própria natureza humana. "As leis da comunicação são as leis da cultura", atestou Umberto Eco. Se a cultura é nosso traço distintivo - e ela é -, a condição humana se estabelece na relação com o outro. Não por acaso, na obra do psicanalista francês jacques Lacan (1901-1981), a alteridade ocupa uma posição-chave, pois, para ele, não há sujeito sem o outro.
Se não há sujeito sem o outro, solidarizar-se com o próximo deveria ser algo incontornável para o homem. Preocupado com o fato de os moradores das metrópoles se mostrarem menos dispostos a ajudar o semelhante do que os de pequenas cidades do interior, o psicólogo americano Stanley Milgram desenvolveu, em 1970, a tese de que a sobrecarga urbana estaria na raiz desse problema. Sua conclusão pode ajudar a compreender a cibersolidão. Para Milgram, a população urbana está constantemente sendo exposta a uma quantidade enorme de estímulos. E eles são tantos que é impossível ao ser humano processá-los de uma vez - como destacou Mezan. Com isso, experimentamos a sobrecarga, e nos adaptamos a ela escolhendo a qual estímulo atender. Passamos a ignorar as pessoas ao redor simplesmente pela impossibilidade de dar atenção a todas elas. Exatamente como agimos no mundo conectado.
A desconexão total e completa - algo considerado um verdadeiro pesadelo para muita gente, apesar do que se disse até aqui - é a realidade cotidiana de 150 pessoas do povoado de Green Bank, no Estado de Virginia Ocidental, nos Estados Unidos. Lá, não pegam celular, wi-fi, rádio, microondas nem babás eletrônicas. Não, não se trata de uma revolta camponesa contra a Era Digital. Isso ocorre na cidadezinha americana porque ela faz parte da chamada Zona do Silêncio, uma área de 34 000 quilômetros quadrados em que qualquer dispositivo elétrico pode interferir no funcionamento do Green Bank Telescope (GBT), o maior radiotelescópio orientável do mundo. Com 148 metros de altura, o GBT foi desenvolvido para detectar ondas de rádio naturalmente emitidas por organismos e corpos que circulam pelo universo. Sua sensibilidade, portanto, é gigantesca: por essa razão, ele precisa de um ambiente sem grandes perturbações para operar. Diz Michael Holstine, gerente do National Radio Astronomy Observatory, onde fica o telescópio: "Nunca tivemos wi-fi. Não podemos sentir falta de uma situação que nunca provamos. Viver aqui é uma experiência tremendamente social. Todo mundo fala cara a cara. Estranho quando vou a uma cidade grande e vejo pessoas na fila do supermercado ou no restaurante sem interagir com quem está ao seu lado".
Holstine, com certeza, estranharia a cena relatada no início desta reportagem. Mas, como defende Sherry Turkle, o mundo digital é uma realidade muito nova, e, assim, os efeitos negativos que anda gerando ainda podem ser superados. Diferentemente das estirpes mencionadas no final de Cem Anos de Solidão, o impecável romance do colombiano Gabriel Garcia Márquez (1927-2014), os cibersolitários têm, sim, uma segunda chance sobre a terra.
Recentemente, um restaurante de Nova York, que preferiu permanecer anônimo e definir-se apenas como "famoso e renomado", divulgou o resultado de um levantamento que comparou imagens de vídeo de seus clientes em 2004 e em 2014. A análise começou a ser feita quando o estabelecimento passou a receber reclamações de que seu serviço estava muito lento. As queixas continuaram mesmo após a contratação de mais funcionários e a redução de itens no menu. Pois bem: descobriu-se que a demora era culpa dos clientes que insistiam em se manter conectados. Enquanto as refeições duravam, em média, uma hora e cinco minutos no período pré-smartphone, elas se estenderam por uma hora e 55 minutos em 2014. Em 2004, nenhum cliente fotografou o próprio prato. Já em 2014, mais da metade registrou o que estava comendo, levando cerca de três minutos para concluir o processo. Não houve pedidos de clientes ao garçom para tirar uma foto da mesa em 2004. Dez anos depois, 27 a cada 45 clientes o fizeram, sendo que catorze pediram para refazer a foto.
"É inegável que as pessoas estão deixando as relações reais de lado", diz Christian Gebara, vice-presidente executivo de marketing e vendas da Telefônica Vivo. Em discussões dentro da própria empresa, Gebara e sua equipe comentavam sobre o desconforto ao ver alguém dirigindo e teclando ao mesmo tempo ou andando pela rua sem desgrudar o olhar da tela. Foi assim que surgiu a campanha #UsarBemPegaBem, que sugere, por exemplo, que os casais desconectem os aparelhos nos momentos a dois e que o celular não seja usado no trânsito, pois aumenta em 400% o risco de acidentes. "Não se trata de um debate contra a conexão, mas sobre seu uso consciente", argumenta Gebara.
Para o sociólogo e advogado Stefan Larsson, diretor do Instituto da Internet na Universidade de Lund, na Suécia, é normal que a sociedade leve tempo para se adaptar e definir bem as regras que vão orientar o novo comportamento tecnológico-conectivo. "A maneira como nos socializamos e nos comunicamos muda; no entanto, o que ocorre agora é mais uma alteração de formato, da voz para o texto", diz Larsson. "Tendemos a acreditar que a voz seja algo mais natural porque estamos acostumados a esse tipo de comunicação. Nosso desafio é encontrar um balanço entre a conexão das telas e o ambiente externo", complementa.
Há estudiosos menos otimistas, que creem que as sociedades conectadas estão gradualmente migrando do que chamam de relações verticais para relações horizontais. No modelo horizontal, os vínculos expandem-se vultosamente, porém são mais superficiais e não demandam o tempo, a dedicação, a atenção e o comprometimento das relações verticais, que progridem e exigem "sacrifícios" para ser cultivadas. As conversas virtuais são, em geral, breves e facilmente transmitidas. Raramente sustentam discussões complexas ou sentimentos mais profundos.
Segundo o psicanalista Renato Mezan, o comportamento cibersolitário é provocado pela ânsia de estabelecer contatos. "É uma espécie de voracidade pela comunicação, que é difícil de suportar por causa de nossas limitações. Não podemos fazer tudo ao mesmo tempo", raciocina ele. Essa "voracidade pela comunicação" espelha, sem dúvida, a própria natureza humana. "As leis da comunicação são as leis da cultura", atestou Umberto Eco. Se a cultura é nosso traço distintivo - e ela é -, a condição humana se estabelece na relação com o outro. Não por acaso, na obra do psicanalista francês jacques Lacan (1901-1981), a alteridade ocupa uma posição-chave, pois, para ele, não há sujeito sem o outro.
Se não há sujeito sem o outro, solidarizar-se com o próximo deveria ser algo incontornável para o homem. Preocupado com o fato de os moradores das metrópoles se mostrarem menos dispostos a ajudar o semelhante do que os de pequenas cidades do interior, o psicólogo americano Stanley Milgram desenvolveu, em 1970, a tese de que a sobrecarga urbana estaria na raiz desse problema. Sua conclusão pode ajudar a compreender a cibersolidão. Para Milgram, a população urbana está constantemente sendo exposta a uma quantidade enorme de estímulos. E eles são tantos que é impossível ao ser humano processá-los de uma vez - como destacou Mezan. Com isso, experimentamos a sobrecarga, e nos adaptamos a ela escolhendo a qual estímulo atender. Passamos a ignorar as pessoas ao redor simplesmente pela impossibilidade de dar atenção a todas elas. Exatamente como agimos no mundo conectado.
A desconexão total e completa - algo considerado um verdadeiro pesadelo para muita gente, apesar do que se disse até aqui - é a realidade cotidiana de 150 pessoas do povoado de Green Bank, no Estado de Virginia Ocidental, nos Estados Unidos. Lá, não pegam celular, wi-fi, rádio, microondas nem babás eletrônicas. Não, não se trata de uma revolta camponesa contra a Era Digital. Isso ocorre na cidadezinha americana porque ela faz parte da chamada Zona do Silêncio, uma área de 34 000 quilômetros quadrados em que qualquer dispositivo elétrico pode interferir no funcionamento do Green Bank Telescope (GBT), o maior radiotelescópio orientável do mundo. Com 148 metros de altura, o GBT foi desenvolvido para detectar ondas de rádio naturalmente emitidas por organismos e corpos que circulam pelo universo. Sua sensibilidade, portanto, é gigantesca: por essa razão, ele precisa de um ambiente sem grandes perturbações para operar. Diz Michael Holstine, gerente do National Radio Astronomy Observatory, onde fica o telescópio: "Nunca tivemos wi-fi. Não podemos sentir falta de uma situação que nunca provamos. Viver aqui é uma experiência tremendamente social. Todo mundo fala cara a cara. Estranho quando vou a uma cidade grande e vejo pessoas na fila do supermercado ou no restaurante sem interagir com quem está ao seu lado".
Holstine, com certeza, estranharia a cena relatada no início desta reportagem. Mas, como defende Sherry Turkle, o mundo digital é uma realidade muito nova, e, assim, os efeitos negativos que anda gerando ainda podem ser superados. Diferentemente das estirpes mencionadas no final de Cem Anos de Solidão, o impecável romance do colombiano Gabriel Garcia Márquez (1927-2014), os cibersolitários têm, sim, uma segunda chance sobre a terra.
(texto publicado na revista Veja edição 2442 - ano 48 - nº 36 - 9 de setembro de 2015)
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