segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Farsa racial - Walcyr Carrasco


Estou em um bom restaurante. Todas as mesas estão ocupadas por brancos. Negros, mulatos ou, como se diz na linguagem do politicamente correto, afrodescendentes estão presentes, claro. Servindo. Garçons, porteiros, manobristas. Raramente, quando saio, vejo um negro na mesa, como cliente. Outro dia estive numa loja de grife, num bom shopping. Era o único cliente. Dois vendedores me atendiam. Entrou um negro, perguntou o preço de um tênis.

- Espere um pouco, vou chamar alguém para te atender - avisou o vendedor.

E continuou falando comigo. O rapaz esperou um pouco e anunciou que ia a outra loja. Saiu, sem resposta. Claro, não era um jogador de futebol, ou uma atriz ou ator famosos. Simplesmente um negro tentando comprar um tênis.

E ainda dizem que neste país não há preconceito racial.

Não somente existe preconceito, como a sociedade se recusa ao debate. Afirmam que não, não há. Na educação, muitas universidades adotam o sistema de cotas. As notícias a respeito sempre são negativas. A pessoa é considerada afrodescendente se assim se declara. O motivo da chacota são os "espertinhos" obviamente caucasianos que burlam o sistema para conseguir uma vaga mais fácil. Fui contra o sistema de cotas, inicialmente, porque achei que estimulava o preconceito. Hoje não vejo alternativa. Como as pessoas de origem negra encontrarão bons empregos, sem estudo adequado? Quando, enfim, serão os clientes dos bons restaurantes? Quando fui escrever a novela Xica da Silva, na antiga TV Manchete, houve um grande debate interno sobre o risco de botar uma negra no papel principal. Parte da direção acreditava que o público não aceitaria. Queriam uma branca de pele amorenada, bem bronzeada. Talvez pintada de marrom com uma tinta bem forte. Mas branca, em seus traços e genética. Eu e o grande diretor Walter Avancini,  já falecido, nos negamos, seria ridículo. Xica da Silva é um símbolo de negritude. Jamais poderia ser interpretada por uma branca. Teimamos. Descobrimos Taís Araújo, com 18 anos, que fez uma linda interpretação. Taís está aí até hoje. Protagonizou também novelas na Globo, sempre com sucesso absoluto.

Existe, na minha opinião, uma deformação do outro lado. Quando escrevi A padroeira, sobre Nossa Senhora Aparecida, na Rede Globo, quis mostrar o sofrimento dos escravos. Quando apareceu o primeiro, chicoteado, entidades negras se manifestaram. Segundo disseram, era uma humilhação. Um representante me perguntou por que não mostrávamos os que se destacaram na época, e não os escravos? Protestei. A escravidão foi o Holocausto dos negros. Os judeus, que sofrem também um Holocausto, fazem questão de lembrar. Há sempre novos filmes em Hollywood e em todo o mundo, monumentos aos mortos em campos de concentração, museus.

- É preciso lembrar o horror para que não se repita - comentou um judeu, meu amigo.

Quando digo Holocausto, não estou sendo leviano. Sabe-se muito menos do que se deve sobre a escravidão no Brasil. Não é novidade para os historiadores que senhoras de engenho atiravam recém-nascidos aos cães. Ou arrancavam os dentes das escravas para colocar nas falhas de suas próprias bocas. Pior: muitos eram "descascados". Ou seja, passavam pelo suplício de ter a pele completamente arrancada. Deu enjoo no estômago? Pois é só o começo.

Esquecer disso por quê? Não temos a obrigação, como sociedade democrática, de lembrar que aqui e em toda a América Latina também houve um Holocausto? Os afrodescendentes deveriam ser os primeiros a erguer a bandeira e exigir reparação. Criar um feriado é pouco. Cotas, vagas, estágios, empregos, isso sim. Não só iniciativas do governo, mas também das empresas. O Bradesco, por exemplo, tem um convênio com a Universidade Zumbi dos Palmares, para absorver parte dos formandos. Na televisão, ao contrário do que pensam, estamos sempre à procura de atores negros. Quando surgem algum bom, imediatamente tem sua oportunidade. Em minha próxima novela, Verdades secretas, procuramos muito uma modelo negra e boa atriz. Felizmente, encontramos, e já vai gravar.

Quando fui à África do Sul, também fiquei chocado com a mesma situação. Os brancos nas mesas e os negros sempre em trabalhos subalternos.

- O apartheid não terminou - conclui. Aqui também é assim, ou talvez pior. Lá, ou em países como os Estados Unidos, há uma luta clara de defesa dos direitos. Aqui fingimos que nada existe. E um apartheid velado continua, década após década.



(texto publicado na revista Época nº 873 - 2 de março de 2015)

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