sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Miados da discórdia - Sérgio Garcia


Uma colônia de gatos que ocupou o entorno da prefeitura carioca motiva uma renhida batalha judicial

A prefeitura do Rio de Janeiro entrou numa briga com uma turma agressiva na defesa de seu território, ágil no ataque e dona de apelo global digno de astros do rock. Estamos falando, é claro, dos gatos. Desde 2014, a prefeitura tenta remover para abrigos os felinos que ocupam o entorno do Centro Administrativo São Sebastião (Cass). Trata-se de um conjunto de prédios às bordas da área central da cidade, onde ficam o gabinete do prefeito, Eduardo Paes, e diversas secretarias municipais. A prefeitura atacou o problema como uma questão menor, sem contar com a reação de protetores de gatos. Eles - não os gatos, e sim seus representantes humanos - recorreram à Justiça para impedir a remoção e desencadearam uma guerra de liminares. O último movimento foi contrário às intenções do governo municipal. Em dezembro, a 5ª Câmara Cível proibiu a captura dos felinos. Mas nenhuma das partes vai desistir do embate por enquanto. A prefeitura deve recorrer.

Muitos dos gatos da colônia nasceram em residências e foram abandonados - não têm as habilidades necessárias para viver bem por conta própria. Os voluntários compram ração, bancam atendimento veterinário e vão castrando os bichos conforme conseguem pagar o procedimento (o crescimento da população da colônia aumentaria também o sofrimento dos bichanos).

A colônia de gatos no Cass nasceu há mais de 20 anos. Chegou a agrupar 120 felinos, antes que a prefeitura começasse a agir para extirpá-la. A alegação era que ela causou uma infestação de pulgas nos dutos de ar-condicionado e nos escritórios do complexo. No momento mais grave, a infestação levou à suspensão do serviço na Secretaria da Fazenda. Os defensores dos animais afirmam que há outras causas possíveis para a praga. Eles afirmam ter um laudo que mostra que os gatos não têm pulgas.

A remoção foi inicialmente bem-sucedida. Na madrugada de 4 de julho de 2014, dia em que as atenções se voltavam para o jogo entre Brasil e Colômbia na Copa do Mundo, uma equipe de funcionários municipais começou a recolher os "colonos", a fim de levá-los para um abrigo público, cujas instalações são criticadas por defensores de direitos dos animais. Um dos artífices da operação foi então coordenador do Cass Bernardo Fellows, atual subchefe de gabinete de Paes, que ganhou o noticiário em novembro ao ser acusado de agredir a ex-mulher.

Antes que a manobra terminasse, os ativistas conseguiram interrompê-la na Justiça. Mais de um ano depois, em outubro de 2015, a prefeitura conseguiu na Justiça a autorização para retomar seus planos. Mas é difícil ser mais ágil que os gatos. Numa reação imediata, a turma pró-colônia conseguiu reverter a decisão.

Os gatos permanecem flanando pelo complexo. Após uma campanha maciça de adoção promovida pelos voluntários, o local hoje concentra em torno de 60 animais, que se espalham por toda parte. Uma pequena parte dos servidores municipais se queixa. Os "gatófilos" rebatem. "A Constituição Federal diz que o animal sem dono é parte da fauna, cabendo sua tutela ao poder público. Então, na verdade, nós estamos fazendo o trabalho que deveria ser do poder público", diz advogada Cristina Palmer, integrante do grupo de defensores dos felinos.

O gato, na era dos pequenos apartamentos, é o novo grande amigo da humanidade. Há 22 milhões deles vivendo com famílias brasileiras e 41 milhões de vídeos sobre eles no YouTube, só em língua inglesa. A pesquisadora de mídia Jessica Myrick, da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, afirma que, no YouTube, os gatos conseguem mais visualizações por vídeo do que qualquer outra categoria. Esse sucesso, porém, tem algumas consequências ruins.

Cresce rapidamente o número de gatos adotados de forma precipitada e depois abandonados. Nas férias de verão, o problema se agrava. Por viagens e outros motivos, o  abandono de animais aumenta em até 30%. Além da crueldade de deixar um bicho doméstico entregue à própria sorte, o fenômeno pode virar um problema de saúde pública. No ano passado, o Rio sofreu um surto de esporotricose, fungo que provoca feridas nos felinos e pode contagiar pessoas. "Estamos muito atrasados. Quase não há políticas públicas para esse assunto", diz o deputado federal Ricardo Izar (PSD-SP), presidente da Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos Animais. É o mesmo diagnóstico feito pela ONG internacional Stray Animal Foundation (na tradução em português, Fundação dos Animais de Rua). Também engatinhamos no processo de colocar chips de identificação nos bichos. "É uma condição indispensável para sabermos quem é o responsável por um animal", afirma Rosangela Ribeiro, gerente de programas veterinários da World Animal Protection (WPA). O debate continua. A ocupação da prefeitura do Rio por gatos e pulgas, também.



(texto publicado na revista Época nº 917 - 11 de janeiro de 2016)

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