Presente na origem da reflexão filosófica, a água teria sido também o principal motor da evolução do homem, ao levar nossos ancestrais a buscá-la onde quer que ela estivesse
"A água está na origem de todas as coisas", acreditava Tales de Mileto (c. 624-546 a.C.), frequentemente considerado, desde a Grécia antiga, o primeiro filósofo. Não é difícil entender por que o matemático e físico nascido na Jônia, na Ásia Menor, detém tal honraria na história das ideias, apesar das contestações à sua máxima. Friedrich Nietzsche (1844-1900), por exemplo, apontava três razões para isso: "Em primeiro lugar, porque sua proposição enuncia algo sobre a origem das coisas; em segundo, porque o faz sem imagem nem fabulação; e, em terceiro, porque nela está contido o pensamento 'Tudo é um'". Em outras palavras, Tales buscava, pela via da razão, e não da mística, uma explicação para a physis, que em seu tempo significava tanto a "fonte originária' como o "processo de surgimento e de desenvolvimento".
Pois bem: há alguma coisa de Tales de Mileto no livro The Improbable Primate: How Water Shaped Human Evolution (O Primata Improvável: Como a Água Moldou a Evolução Humana), do zoologista e paleontologista Clive Finlayson, diretor do Museu de Gibraltar. Na obra - publicada recentemente pela Oxford University Press e ainda sem previsão de lançamento no Brasil -, como o próprio título evidencia, o autor defende atese de que a água foi o verdadeiro motor do nosso desenvolvimento. Finlayson integra uma corrente de cientistas para os quais somos uma espécie politípica, ou seja, única, sem dúvida, porém com linhagens diferentes. De acordo com sua teoria, nós e nossos mais longínquos antepassados partilhamos um traço incontornável: a necessidade de ingerir água todos os dias. "Os estudos costumam enfatizar o papel dos alimentos no nosso desenvolvimento. É claro que precisávamos comer, mas éramos onívoros. Em algumas regiões, comíamos muita carne. Em outras, mais plantas ou insetos. Ou ainda uma combinação de tudo isso. Em relação à caça, alguns grupos comiam cangurus. Outros, antílopes. No entanto, a necessidade de tomar água diariamente sempre foi o fator universal da equação", disse o pesquisador em entrevista à VEJA.
Naturalmente, nada é simples de comprovar no complexo processo da evolução humana. Finlayson reúne uma série de dados surpreendentes para tornar pertinente a posição que sustenta em seu livro. Segundo ele, as grandes mudanças climáticas pelas quais passou o planeta fizeram com que nossos antepassados abandonassem o conforto das florestas. Há 2,8 milhões de anos, o clima terrestre entrou em mais um ciclo de seca e as reservas de água ficaram mais distantes. As regiões de mata apresentavam cada vez mais clareiras com vegetação rasteira. Os hominídeos que viviam próximo das árvores sentiram necessidade de atravessar essas savanas em busca de novas fontes de água. Por se tratar de um ambiente ainda pouco conhecido por eles e já dominado por predadores, escolheram o período de sol a pino - quando a maior parte dos animais prefere economizar energia e descansar - para implementar seu projeto desbravador.
Tais incursões no desconhecido exigiram uma adaptação da mobilidade e até mesmo do cérebro, teoriza Finlayson. Para cobrir uma área territorial mais extensa, era vantajoso ter um corpo mais alongado, com membros inferiores maiores, que facilitavam o deslocamento. O cérebro precisou se desenvolver para armazenar e lembrar as distintas localizações das reservas de água - especialmente durante os períodos de seca. Um órgão maior, por sua vez, exigia um sistema eficiente de resfriamento, que pudesse manter a temperatura a adequados 37 graus. Para se adaptarem àquela nova necessidade, nossos antepassados foram perdendo pelos do grupo e ganhando mais glândulas sudoríparas. O Homo sapiens, portanto, teria sido uma resposta evolucionária à distribuição esparsa de água.
Finlayson acredita que mesmo os milhares de anos que nos separam de nossos ancestrais não foram capazes de apagar as memórias mais remotas. "Basta observar com atenção pinturas do período renascentista, do iluminismo ou da Inglaterra vitoriana. Nessas telas, o ambiente idílico quase sempre é retratado com árvores, clareiras - e água", frisa o pesquisador.
Se as mudanças climáticas sempre moldaram a vida dos seres humanos, não haveria motivo para acreditar que atravessaremos incólumes os desafios apresentados pela atual onda de aquecimento global - evidentemente associada aos cenários de seca que atormentam a capital paulista. "Teremos de usar todo o conhecimento que acumulamos ao longo desses anos para, conscientemente, tomarmos decisões cruciais sobre o futuro", diz Finlayson, que não está sozinho nesse raciocínio. Para o arquiteto e engenheiro Carlo Ratti, professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), tal acúmulo de conhecimento se traduz hoje em tecnologia. "As inovações aliadas à crescente capacidade de coletar dados sobre as sociedades, ajudarão a tornar os sistemas energéticos mais eficientes e, consequentemente, a adaptar mais uma vez o comportamento humano", explica ele, colaborador do Arq. Futuro, fórum brasileiro de discussões sobre arquitetura e urbanismo, que neste ano tem debatido o problema da água nas cidades.
Ao contrário do que se costuma supor, a preocupação com a água está longe de ser algo pontual, imediatista: é humana, ratifica Finlayson. Pode-se concluir isso mesmo quando se considera a possibilidade de que Tales de Mileto estivesse focado apenas no aspecto geológico e não metafísico ao se debruçar sobre a questão, hipótese defendida por historiadores do porte do suíço Olof Gigon (1912-1998). "Quando Tales diz que 'tudo é água'", escreveu Nietzsche, "o homem estremece e se ergue do tatear e rastejar vermiformes das ciências isoladas, pressente a solução última das coisas e vence, com esse pressentimento, o acanhamento dos graus inferiores do conhecimento."
(texto publicado na revista Veja edição 2397 - ano 47 - nº 44 - 29 de outubro de 2014)
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