Outubro de 2004. Era a primeira vez que meu pai me levava a uma cerimônia de entrega do Prêmio Vladimir Herzog - que reconhece as melhores reportagens realizadas, no ano, sobre Direitos Humanos. O evento ocorria no Memorial da América Latina, lá na Barra Funda, próximo à sede da TV Cultura, onde meu avô havia trabalhado nos meses anteriores à sua prisão e morte.
A premiação transcorria normalmente e eu, com meus 7 anos de idade, pouco entendia do que estava acontecendo e achava bastante cansativo os longos discursos daquelas figuras engravatadas que ocupavam a mesa no palco. Até que um premiado resolveu usar o microfone, de maneira eufórica, para fazer propaganda partidária: "Vladimir Herzog certamente votaria em fulano nas eleições que se aproximam!" (as eleições municipais de São Paulo ocorreriam nos próximas dias). Foi o suficiente para meu pai se levantar e pedir o microfone para classificar como absurda e desrespeitosa a fala do homem. Era inaceitável para ele o uso do nome de seu pai em apologias partidárias. Para mim, caiu ali a ficha da responsabilidade que eu carregaria para o resto da minha vida.
Antes desse episódio, sabia muito pouco sobre meu avô. Na realidade, nem sabia as circunstâncias de sua morte e misturava completamente a história da perseguição nazista que ele sofreu ao final da Segunda Guerra Mundial com sua história durante a Ditadura Militar no Brasil. Estava na hora de me informar melhor.
Conforme foram passando os anos, comecei a frequentar cada vez mais os eventos com a velha guarda do Partidão (apelido do Partido Comunista Brasileiro) e aquilo era o máximo para mim. O despertar de qualquer consciência política em mim surgiu ao ouvir as histórias e as risadas que ilustravam os jantares com os antigos amigos de meu avô. Apesar de tudo, das prisões e das torturas que quase todos passaram, lá estavam eles, cientes da importância de suas lutas para a redemocratização do Brasil embora menos rigorosos em relação aos valores que defenderam na juventude.
Vlado não teve a mesma sorte de seus colegas e não pode estar presente nesses momentos de reunião para contar as suas histórias. Não pode, porque foi assassinado pelas forças repressivas do regime militar, no dia 25 de outubro de 1975, e ainda acusado de suicídio em mais uma fantasia ofensiva à racionalidade alheia produzida pelos militares.
Graças à luta política da família, essa história não será redigida nas linhas mal traçadas pelos generais, sargentos e médicos legistas de plantão. Em 2013 foi emitido um novo certificado de óbito para a família, que reconhece a tortura sofrida por Vlado nos porões do Doi-Codi.
Nas palavras da mãe de Vlado, Zora Herzog, na carta que ela enviou ao juiz que concedeu a liminar contrária ao Estado, ainda em 1978: "Meu filho não voltará, mas seu bom nome não ficará manchado. Se seu desaparecimento não foi em vão para a história do país, para mim sua perda é definitiva, minha dor não tem consolo".
Este ano completam-se 40 anos da morte de meu avô. Mas completam-se também 40 anos da memorável missa ecumênica na Praça da sé, que reuniu 8 mil pessoas em homenagem ao Vlado e que marcou o início da queda da ditadura militar, pois a farsa começava a vir à tona.
Quando me perguntam o que significa ser neto de Herzog, não consigo fugir da dicotomia: a dor familiar de não ter conhecido meu avô, que tinha tantos amigos e era tão querido e o orgulho de ser neto de um homem que morreu lutando pela justiça e pela liberdade de expressão.
(texto publicado na revista Visconde edição IV - nº 26 - novembro de 2015)
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