Biografia recém-lançada no Brasil revela as origens do estilo pastoral do papa e peculiaridades raramente associadas a um pontífice, como o gosto pela culinária
"Eram duas horas e quinze minutos da tarde de 26 de fevereiro de 3013 quando o voo da Alitalia decolou do solo argentino. O cardeal Jorge Mario Bergoglio, arcebispo de Buenos aires, se colocou em seu assento, esticou as pernas e respirou fundo. Tinha pedido para sentar na fileira da porta de emergência porque uma dor no joelho e no quadril que o obriga a tomar corticoides piora quando ele fica várias horas sentado. Pouco depois da decolagem, na solidão e no silêncio do voo, sentado no seu assento da classe econômica, fileira 25, corredor, as dúvidas começaram a assaltá-lo. 'Fiquem tranquilos, não existe nenhuma possibilidade de que eu venha a ser papa. ' Bergoglio tinha repetido esta frase aos seus muitas vezes. Ele tinha certeza que sua hora já tinha passado, entre outras razões, pelos seus 76 anos." Quinze dias depois, o cardeal foi eleito papa - o papa Francisco. A descrição da viagem inicia a graciosa e surpreendente biografia do pontífice. A Vida de Francisco, da jornalista argentina Evangelina Himitian, recém-lançada no Brasil pela editora Objetiva. O livro retrata a vida de Francisco desde os tempos no bairro de Flores, centro da capital portenha, onde ele nasceu. Primogênito de cinco filhos, o papa passou a infância e a adolescência praticamente morando na casa da avó Rosa para aliviar a mãe nos cuidados dos irmãos.
Foi com ela que Francisco aprendeu a rezar e dela herdou a devoção a Nossa Senhora. A narrativa de Evangelina, porém, se detém fundamentalmente no perfil do sacerdócio de Bergoglio em Buenos Aires. Inúmeras histórias mostram que a pregação firme, humilde e pastoral que se tornou a marca de Francisco é, na verdade, sua maneira de ser desde sempre - como a simplicidade de viajar para Roma na classe econômica, sozinho, sem comitiva.
Bergoglio sempre defendeu a tese de que a Igreja deve dar preferência aos pobres. A tradição do lava-pés, que relembra anualmente o episódio bíblico em que Jesus lavou os pés dos apóstolos em sinal de humildade, foi seguida por Francisco no último 28 de março. O papa impressionou os fiéis não só ao lavar, mas também ao beijar os pés de jovens detentos, entre eles uma mulher muçulmana. Evangelina conta que Bergoglio repetiu a cena apaixonada a cada ano de seu apostolado em Buenos Aires, sempre com pessoas carentes, doentes ou dependentes químicos. Qualquer medida política que, a seu ver, desfavorecesse os mais pobres o tirava do sério. Inclusive quando isso ocorria dentro da própria Igreja, Francisco é abertamente contra a Teologia da Libertação, movimento religioso que tentou adotar o marxismo em ensinamentos cristãos, sob o argumento da opção preferencial pelos menos favorecidos. "Não se deve entender o pobre a partir de uma hermenêutica marxista. É preciso conhecê-lo a partir de uma hermenêutica real, extraída do próprio povo", dizia ele.
Outro retrato de simplicidade de Francisco teria ocorrido no conclave de 2005, para a escolha do sucessor de João Paulo II. No terceiro escrutínio, Bergoglio e Joseph Ratzinger teriam se aproximado na disputa dos votos. A votação desempatou depois de o cardeal argentino ter pedido a seus pares, durante a pausa do almoço, que seus votos fossem encaminhados dali para a frente para Ratzinger. Entre as razões para o desprendimento haveria a de que Bergoglio não queria ser "um candidato da divisão, mas do consenso" - como aconteceria oito anos depois.
Com apenas dois meses de papado, Francisco é um fenômeno editorial. Até julho, terão sido lançados seis títulos sobre o pontífice. A Vida de Francisco, porém, foi o único a ser escrito por uma das poucas jornalistas que conviveram com Bergoglio, sempre avesso a entrevistas. Evangelina não apenas escreveu reportagens sobre ele para o jornal argentino La Nación por cerca de dez anos como, desde 2006, passou também a trabalhar na equipe dos encontros ecumênicos promovidos pelo então cardeal Bergoglio. A proximidade permitiu revelar peculiaridades raramente atribuídas a um papa, como as habilidades culinárias de Francisco. Na década de 80, quando era reitor do Colégio Máximo e da Faculdade de Filosofia e Teologia de São Miguel, em Buenos Aires, Bergoglio costumava reunir grupos numerosos de alunos. Aos domingos, dia de folga da cozinheira, era ele que preparava as refeições. Seu frango com creme de leite e manteiga é famoso. Outra singularidade: ao ser eleito papa, Bergoglio ligou para os amigos argentinos e lhes deu um número de fax do Vaticano para que eles pudessem enviar cartas. O pontífice as responde por telefone.
(texto publicado na revista Veja edição 2321 - ano 46 - nº 20 - 15 de maio de 2013)
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