Dinheiro não é apenas um meio de transações financeiras. Ao usá-lo, manifestamos nossos objetivos e prioridades na vida -e, quando nos conscientizamos disso, podemos direcioná-lo para nos sintonizar com nossos mais elevados anseios e espalhar o bem, seja em grandes ou em pequenas quantias
Primeiro semestre do ano é tempo de Imposto de Renda, época em que aquela maratona de recolher informes, extratos e recibos e passá-los para o formulário frequentemente propicia reflexões sobre como estamos ganhando e gastando nosso dinheiro. Ele é suficiente para as despesas? Quais delas são excessivas ou fugiram do normal? A escola das crianças pesou muito no bolso? E os gastos com saúde? Ao fim de tantos questionamentos, não é raro surgir a conclusão de que os ganhos do ano não bastaram e a briga com o suado dinheiro, para esticá-lo ao máximo, deve continuar até não se sabe quando.
Brigar com o dinheiro mostra uma visão no mínimo acanhada sobre essa ferramenta básica para viver no mundo atual. Como ferramenta, por sinal, ele ganha a coloração da finalidade que lhe damos. Uma lâmina cortante, observou o psicólogo transpessoal Stanislav Grof, tanto pode se transformar no bisturi que salva vidas em cirurgias quanto na faca usada para assassinar alguém. No livro The soul of money: transforming your relationship with money and life ("A alma do dinheiro: transformando sua relação com o dinheiro e a vida"), editado pela W.W. Norton, a ativista global norte-americana Lynne Twist propõe uma revisão ampla sobre o relacionamento que mantemos com o dinheiro. Esse olhar diferenciado atinge níveis mais sutis e nos permite associar o dinheiro a nossos mais elevados desejos e expectativas.
"Num mundo que parece girar em torno do dinheiro, é vital aprofundar a relação com nossa alma e fazer com que ela se relacione com o dinheiro para criar uma nova e profunda prática espiritual", afirma Lynne. "A alma pode igualmente equilibrar e nutrir nossa cultura do dinheiro. Num exame honesto, corajoso e cuidadoso de nossa relação com o dinheiro, encontramos alguma verdade, e, nessa verdade - qualquer que seja ela -, enormes possibilidades e um poder surpreendente."
Em seu livro, Lynne propõe questões que ajudam os leitores a tornar sua relação com o dinheiro mais forte, verdadeira e livre, não importando quais sejam as circunstâncias financeiras do momento. Não se trata apenas de dar as costas para o dinheiro ou simplificar despesas, orçamentos ou o planejamento financeiro - apesar de, como sublinha a autora, a sabedoria conquistada com isso ter relevância em todas essas atividades. O exercício, afirma ela, refere-se a viver conscientemente, com intensidade e alegria na relação com o dinheiro, e aprender a compreendê-lo e abraçá-lo para transmutar todos os aspectos da vida.
"Há centenas de práticas espirituais que levam à totalidade e à paz de espírito", lembra Lynne. "Poderia parecer estranho considerar o dinheiro uma trilha para esse lugar, mas eu a percorri sozinha e vi muitos outros fazerem o mesmo. Com o processo de análise, você leva para esse lugar suas forças e habilidades, suas mais elevadas aspirações e qualidades. Não importa se você tem muitas ou poucas posses; quando dinheiro e alma estão alinhados, você experimenta a riqueza e a genuína prosperidade da vida - aquilo que chamo de suficiência."
Fazer a contabilidade da alma do dinheiro implica examinar com transparência os sentimentos íntimos a respeito do dinheiro e a forma de se relacionar com ele. Para tanto, Lynne recomenda concentrar-se nos princípios da suficiência:
- O dinheiro é como a água. Ele flui por sua vida e pode carregar a intenção da sua alma para nutrir as pessoas e projetos que mais significam para você.
- O que você valoriza é valorizado. Ao aplicar sua atenção, tanto em assuntos de dinheiro como da vida em si, suas riquezas interiores crescem, independentemente do valor monetário.
- Quando você para de buscar mais do que não precisa, liberta uma vasta quantidade de energia para fazer mais com o que tem - e o que você tem cresce.
Para iniciar, Lynne indica uma faxina mental: livrar-se do que ela denomina "mitos e mentalidade de escassez", como crenças do tipo "não há o suficiente", "quanto mais, melhor' ou "é tudo assim mesmo". O exercício não é fácil, lembra a autora, pois significa ir contra ideias com frequência incutidas na infância pelos pais e, por outro lado, driblar a cultura do consumismo que a publicidade e o marketing estimulam. Esses padrões restritivos devem ser trocados por conceitos de suficiência - por exemplo, sempre há o suficiente e nós nos bastamos para encarar os desafios da vida, seja qual for nosso nível de renda.
A partir daí, comece a examinar núcleos centrais em sua vida, relacionando-os com o fluxo de dinheiro que entra e sai de sua conta. Lynne sugere alguns deles a seguir e recomenda que as respostas obtidas sejam cotejadas com o "ponto fundamental" no final de cada item, a fim de que o dinheiro e a alma possam fundir-se para levar sua vida a um novo patamar evolutivo.
Família e amigos
Sua família e sua rede de amigos são uma espécie de patrimônio intangível de que você dispõe. Deixe de lado a rigidez, o julgamento e a crítica, as reclamações e os temores sobre o dinheiro e a falta que ele faz. Nutrido de suficiência, considere o fluxo dinâmico de dinheiro nesse ambiente e reflita: a ênfase no dinheiro, as preocupações sobre ele ou o poder do dinheiro desvalorizam certos membros desse núcleo ou favorecem outros? Como o dinheiro magoa você e sua família emocionalmente?
"Apenas por este momento, liberte-se da luta, dos ferimentos ou da atitude defensiva sobre o dinheiro na família, e sentimentos de privilégio, deficiência ou inutilidade", afirma Lynne. "Veja que você não é seu dinheiro. Sinta-se e aos outros membros da família independentemente do dinheiro. Veja cada pessoa como um ser humano perfeitamente suficiente."
Ponto fundamental
A partir dessa reavaliação de si mesmo e das outras pessoas, imagine como usar seus recursos financeiros para nutrir e encorajar os outros de maneira mais consistente. Pense que você amplia seu amor e seus recursos para beneficiar uma "família" mais abrangente e inclusiva, tratando os pais como seus próprios pais, as crianças como seus próprios filhos, as pessoas em geral como seus irmãos e irmãs. Valorize o que você já faz nesse sentido, como voluntariado e doações a organizações beneficentes, e pense no que poderia fazer para ampliar essa generosidade e essa ligação carinhosa.
Renda
Seu trabalho não se resume aos ganhos que obtém dele. De início, ponha-os de lado e reflita sobre todos os tipos de trabalho que executa, o tempo, a energia e a atenção que investe neles e como eles contribuem para sua família, os colegas, o local de trabalho, a organização e a economia em geral - não importa se o trabalho se desenvolve em casa, num escritório, centro comunitário ou núcleo religioso. Examine o valor criado pelos outros e pense como o trabalho deles colabora para o bem comum e seu próprio bem. Veja-se como um ser integralmente carinhoso, produtivo e cooperativo.
Em seguida, recoloque o dinheiro no quadro. Ele altera a maneira pela qual você encara seu trabalho e o valor de seu empenho e contribuição? O valor em reais atribuído ao seu trabalho faz você se sentir mais ou menos importante como pessoa? Como ele influencia o modo como você vê os outros - um faxineiro, um executivo de multinacional, um médico, uma dona de casa?
"Como seu trabalho reflete seus valores mais profundos e seus mais elevados compromissos?", pergunta Lynne. "Quais aspectos de seu trabalho o satisfazem mais? Quais o deixam mais orgulhoso? Quais são os compromissos que você estabelece para manter esse emprego e fazer esse trabalho? Ele limita seu tempo para seus filhos e/ou seu cônjuge? E quanto ao tempo para nutrir a si mesmo? Ele dá suporte a um modo sadio de viver para você e para outras pessoas? Você evita pensar sobre as consequências do seu trabalho ou certos aspectos dele? Está comprometendo seus valores e integridade por conta do dinheiro?"
Ponto fundamental
Localize as divergências entre a maneira pela qual você gostaria de se sentir sobre seu trabalho e como se sente de fato. Como seria possível avaliar o valor real de seu trabalho? E quanto a aprimorá-lo, a melhorar seu desempenho ou o ambiente de trabalho? Certos aspectos de seu trabalho se chocam contra seus valores íntimos? O que você pretende fazer para mudar essa situação a partir de si mesmo? Ou prefere transferir-se para um trabalho mais afinado com seu espírito?
Despesas
Um exame atento do seu talão de cheques ou do extrato do seu cartão de crédito indica para onde você está destinando seu dinheiro -ou seja, suas prioridades na vida. O dinheiro pode estar custeando gastos essenciais, investimentos de longo prazo (a educação dos filhos, por exemplo) ou despesas supérfluas, como carros luxuosos ou jantares caros. Esse perfil pode às vezes estar em sintonia com o que você pensa de si próprio, às vezes não.
A suficiência propicia uma forma natural, saudável e autêntica de encarar o fluxo do dinheiro. Não importa o valor despendido, lembra Lynne, ele sempre pode ser destinado ao bem, a pessoas, organizações e projetos sintonizados como nossos mais elevados ideais.
"Seus investimentos e gastos representam um apoio ao mundo da maneira como você gostaria que ele fosse? Como uma mudança no fluxo de dinheiro em sua vida afeta como você se sente e como se sente em relação a outros? Como isso se compara à maneira pela qual seus pais e sua família reagiram a mudanças do destino quando você estava crescendo? Que experiência você deseja criar para as pessoas ao seu redor? Seus filhos? Seus amigos ou colegas?"
Ponto fundamental
Se a forma como você gasta ou investe o dinheiro não está de acordo com seus valores e compromissos mais íntimos, vale a pena reavaliar como o dinheiro flui para dentro e para fora da sua vida, quais são seus sentimentos a esse respeito e para onde você deseja direcionar essas quantias.
Doações
Qualquer gesto de generosidade se encaixa na definição de filantropia. Portanto, não há limites para sermos filantropos. Ao doarmos dinheiro, afirma Lynne, nós o usamos como um transportador, como energia e como uma moeda para o amor, o compromisso e o serviço.
De alguns anos para cá, muitas organizações brasileiras sem fins lucrativos passaram a usar o telemarketing para buscar doações. Como você se sente ao receber um desses telefonemas? Pensa nas entidades como dependentes necessitados e tem ojeriza dessas ligações? Sente-se com raiva ao doar ou culpado por não doar? E como se sentiria se visse essas organizações como "empreendimentos com fins sociais lucrativos", que trazem benefícios a todos?
"Gandhi nos exortou a ser a mudança que gostaríamos de ver", frisa Lynne. Ela pergunta: "Se sua vida determinasse a direção da vida para todos, como você poderia usar seus recursos para mudar o mundo? Como você poderia financiar coisas importantes para si próprio que não estão na agenda do governo?"
Ponto fundamental
O que mais lhe importa na vida? Liste os itens - por exemplo, cônjuge e filhos, a paz mundial, as crenças políticas ou religiosas. Depois, examine o talão de cheques e o extrato do cartão de crédito e verifique quanto de seus recursos é destinado a essas finalidades. Considere o dinheiro que aplica nessa área como um investimento nas causas que tocam sua alma.
Imposto devido
Para Lynne, os impostos são mais que uma obrigação: constituem uma parte de nosso papel como cidadãos na vida de uma nação, de um sistema político e cultural criado por nós. O Brasil ainda não tem tradição de possuir entidades públicas de desempenho impecável, mas aqui e ali há exemplos, como a Embrapa e o Instituto Butantã. Qual é a importância de instituições como essas para você?
Ponto fundamental
O que significa para você ser um cidadão mais do que simplesmente um consumidor? Como você pode usar o dinheiro para apoiar esse conceito? Como você pode encorajar outros a fazer o mesmo?
"Suas respostas a essas questões lhe mostrarão onde o dinheiro e a alma se fundem para nutrir sua vida e fazer a diferença no mundo", afirma Lynne. "É nesse engajamento que expressamos nossa alma através do dinheiro - e damos ao dinheiro sua alma."
(texto publicado na revista Planeta edição 437 - ano 37 - fevereiro de 2009)
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